terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ecoador


 O ato:

Caminha em silêncio pelo vale
Sob o abutre, que solta a pena
Pena que ao chão se resvale
Numa girândola de ar, amena

O fato:

Estou vivo, humanidade!
Mas sou surdo, felizmente
Quando o rio se põe na cidade
No vale ouço a lua nascente

O vale:

Personifica o doce vazio
Que ao solitário acalenta
No qual corre o rico rio
De cuja água se alimenta
O sem-cultura arredio
Que em seus moldes se arrebenta


O ar:

Frio e úmido de pastagens
Um fluído de segredos
É meu Hermes de miragens
Traz mensagens de além dos Penedos
Que me contam minhas coragens
E às quais confio meus medos


A pena:

Quase pena, a penitência
A asa do meu intento
Como toda dissidência
Sobrevive a todo alento
Chamam 'Tempo' sua clemência
Ao dobrar-se sobre o vento

O abutre:

Apesar das abas do mundo
Das quais tua pena faz parte
Quando o Estige dobra ao fundo
Comerá até que se farte
Se lhe apraz o moribundo
Então devora minha arte!

A queda:

A pena do abutre
Pena de mim, que cai
Da qual o vale se nutre
Na medida em que se esvai

O segundo ato:

Um olho negro, ávido
Ave por cujo olho olho
A sombra de um vale pávido
Sob um filtro de petróleo

O segundo fato:

Toda árvore alça ao céu
E falha, pois é do vale
Mas a pena, como um véu
Cai em quem a ela escale

Permissão:

Levanto a pena do chão
Do vale foi sempre plena
O abutre deu permissão
E o vale, vale à pena


A Elias Nasser

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Amargo

Estou cansado de estar cansado
Revoltando-me na cama
Sob o pesadume dormente de uma chuva de madrugada
Estou cansado de não gostar
Não-estar, mal-estar, mal-falar do que mal fazer
Estou cansado de engenharia reversa
De uma quebradiça exatidão
Estou cão-sado
Com fome do que não sacia
Na volta da noite má dormida
De um café de manhã fria

Estou cansado de enterrar
A língua morta na boca
Roer-me os fardos de Atlas
Sozinho

Mas estarei sozinho?
Meus irmãos estão nas estrelas
Espelhas
Reflexos longínquos do que eu acho que sou
Perco que sou
E não vou mudar
A dar ptar
Estamos fadados a morrer sozinhos
Curdos, judeus esfoliados
Ao chão doados
Abandonados?

Não.

Um fio de luz me vê
Eu não o vejo, me vê
E silencia-nos
Um fio-mãe de luz me acolhe ao colo
E me canta a canção da indulgência

Uma visão adamantina
De uma máquina ativa
Florescendo na matina
Uma humanidade viva
Que da paz só não se atina

Um segundo estático
De luz branca
Estamos parados
Escorregando pelo tempo
Pálidos e livres
E não vamos mudar
Ao dar ptar
Um fio de luz
Ma(i)s nada me ama
E eu posso dormir...
Dormir bem...

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A uma gota de tinta-flor. Insignigicantemente tudo

Jardim secreto

Caminhar, e ser averso
Passar batido pelo concreto
Na dobra da rua, um inverso
Na volta da vida, um jardim secreto
 Que não dança nem fala por verso
Uma joia dançando no carbono
De uma fuga, um escapamento
Lamentando a febre e o sono
Luto negro como o vento
Pernas podres de um outono

No passadiço, de tardinha
Uma menina deixa uma flor
Na nua pedra-rua da cova minha
Murcha, fraca, parca, nua, sem cor
Mas secreta, despudorada e daninha

"Moça, peço perdão
Você não sabia
Que debaixo do chão
Um jardim secreto te via

Não se assuste, minha jovem
Com os séculos que nos separam
Quero que seus lábios provem
O fruto que em mim sepultaram

Não é certo que um jardim
Ecoe vozes por uma calçada
Por um motivo pouco, assim
Como uma flor nela deixada

Mas permita-me dizer
Não posso te ver
Minha raiz mais profunda
Já é cega e moribunda
A morte já me dispensa a dor
Mas me conta tua flor
Que em minha cova está ainda

Que tu és linda"

O silêncio que se seguiu
"Quieto como um túmulo"
Foi o pesar do vazio
Do silêncio-luto um cúmulo

O que é o amor para um jardim deserto
Incubando sem esperança num sem-espaço?
É um caminho-flor que lhe é aberto
Através de terra, concreto e aço

E a bailarina dos bolsões
Que dança livre, e não fugindo
Pelas frestas entre os quarteirões
Como dizer-lhe o quanto é lindo
Esse um gesto entre milhões?

Não foi me dar a flor, o que você quis
Mas pela dureza que me sela
Molhou o mundo sua raiz
Uma manchinha amarela
Pintando minha vida
Nessa escura tela

"Volta, moça!
Exuma minha arte!

Quero ser sua tela
Que a noite cai
Quero ser sua vela
Me iluminai!

Pinta-me como tu és
Seja-me
Semeia tuas flores de sal
Sobre este passado cristalizado
Faz viver na selva um jardim
Faz-me aberto, exposto, fecundo
Faz-me novamente agente do mundo!
E quando o ciclo voltar para mim
E eu puder, enfim, morrer
Esquece-me a tempo
E volta a dançar
Entre os quarteirões
A simplicidade do que peço
É uma flor no chão

Moça... Eu acho que te amo...

..."

domingo, 22 de setembro de 2013

Maresia

Sal e aço
O rumo que asfixia
Infecto de sargaço
Podridão e maresia

Navegar é impreciso
Viver é pré-siso

Uma estátua cansada
No cais do porto
Aponta a ponta parada
De um mar morto

Um prego, um trapo
Uma rede, uma meretriz
Um peixe podre, um caco
Tempo fora da matriz

sábado, 31 de agosto de 2013

Mais nojo

Eu sou proibido!

A areia corre
Nos leitos rasos da clepsidra
Aguda e anidra

Meu relógio
É um liquidificador de lama
Meus pés pútridos
Minha auromática de azedo fétido
É proibida nos carpetes e nas engrenagens
Em castelos industriais
Em rugosas pastagens

O mundo não me tem
Mas pelo mundo sou tido

Pois meu certo não é o bem
E eu sou proibido

Eca...



Sabia que a gosma
A caca, a pasta
Viscopegajosa
Não é compreendida pela ciência?

Na matéria e na energia nos doutoramos
Nessa caca de partícula-onda chafurdamos
Mas, mingau de aveia...

A lama é mais complexa do que a equação de Shröedinger
Porque a lama não é sólida nem fluída
Ela é a memória reologicamente sol-gélica

De que nada é sólido
E nada é fluído

Hmmm...



Meu amigo
Não leve a grosseria
Não sou o arquiteto mais paciente de Babel

É esse meu juizo
Caracoleônico

Não é que seja papo de Cachorro e Baleia
Gregos e troianos
Ou ingleses e utopanos

É que,

[E veja-me Karamazovicamente inocente aqui]

Entra por um olvido
E sai por outro.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Sonho de vidro



Som
Vazio
Que vem
Sem pio
E vai
Sem dizer
O porquê
De ser

Vidro

Não pude tocar sua alma-flor
Não pude regá-la de água-amor
Falhei em dobrar-me sobre ti
Falhei em dobrar-me e te dizer

Não se quebre ainda...

Ácidos ponteiros-emoção
Derretendo o tempo-negação
Te esperei num sonho de aço mas só te vi através do
Vidro

Onde está o som?
Com a pressa de um cardíaco tentei
Juntar cacos de amor da forma que sei
Mas se foi em estridente semitom

Onde está o vazio?
De seu tempo caro para me acolher
De sua vítrea perfeição para me viver
É ambicioso te querer
Viu...

Outros tempos tempos e aços lhe virão
Haverão mais cacos em meu chão
Ah, me esqueça e deixe-me em sonho
Revejo-te em vidro
A






quarta-feira, 17 de julho de 2013

Pré mortem

Falam os fungos


A escuridão nos assegura

Vós quereis se unir ao longe?
Vós que, reis ao longe, querem luz?
Seu medo, jovens príncipes, é reminiscente
E a memória, maldição da nobreza, é filha da luz
Mas por ele, querem a posse da paisagem
Posagem?
Tatuar nos olhos o espelho do que É?
Estribucheiros, por quê?
Ah, mas falam grandes palavras contra a ignorância
Que temos, frágeis brotos de um sub-mundo
Ignorância? Não é senão ignorar
Um passo além de saber e não saber
Acham que a luz é a Verdade?
E se for, para quê a Verdade?

A escuridão nos assegura

A Verdade é um veneno compulsório
Do homem mais amado é a seta de visco
Num tiro de cego, mortal e irrisório
Não absolvo as plantas, não corro o risco

A escuridão nos assegura

Todos nós temos a Vida
Que é outra coisa que não Nós
E toda Vida é um fungo
Ou um gato, por melhor dizer
Nada significa um afago de amor
Queremos distância do calor
Mas precisamos ser alimentados

Joga à sua Vida felina
De longe, com cuidado
Nacos de "por quê" assado
Mas não vem com carícias
Sofistas, impropícias

Que a Vida tem pouco tempo
Muito menos do que nós
A perder pensando em luz

Somos pontos
Sem presença passada, presente ou futura
A luz nos conta contos
A escuridão nos assegura

Falam as ovelhas

E o que "É-para-fazer"?

Falam as algemas

Bom dia, meu querido
Você está perdido?
De alguma cátedra moral
É caído?

Veio nos dizer o quanto está errado
Não tomou cuidado?
Ou o certo talvez seja crime
Bem policiado?

Bem vindo, amor, ao sujo
Ao podre enferrujo
De mim você pode fugir
Mas como de você eu fujo?

Seja o que for que te fez
Ou te foi fazido talvez
Daqui só sai
Manchado de vez

Porque está a sacudir?
Quer partir?
O que é meramente conter
E o que é reprimir?

Bem vindo, seu podre, ao mal lavado
Mal lavrado...
Não tema, não sou o fazido
Sou só o fado

Ah, mas seja paciente
Não range o dente
Eu tenho mais de amigo
Do que de gente

Eu tenho o tempo em meu ouvido
Em eras medido
Que passa a Balder
E ao bandido

Eu tenho o espaço na minha boca
Que me chamem de louca
O que é "o resto do mundo"
Senão outra cela oca?

Fala o pêndulo


E se
E se E se E se E se E se E se
E se E se E se
E se

E se
E se E se
E se
E se E se E se E se E se
E se E se
E se

E se E se E se
E se
E se
E se E se E se E se E se E se E se E se E se
E se E se
E se E se E se E se E se

E se
E se E se E se E se
E se E se E se E se E se E se
E se E se
E se
E se E se E se
E se E se E se E se E se E se E se
E se E se
E se

E se...

Fala o cabide


Meu amor foi embora
Quando ele volta?
Podia ser agora

Como ele se solta?

Que se elucide
Não sou o abutre
Sou só o cabide

De amor não se nutre

Fala Deus


Ah, não me pergunte. Por quê todo mundo vem achando que eu sei?

Fala o feiticeiro


Perdão é uma coisa engraçada.
Perdão, Deus, não estou falando com você

Falo do perdão de uma bolha
Quando o ar, repulso à água
Não lhe guarda mágoa
E carrega dela uma lágrima próximo ao aéreo coração

Coisa engraçada, esse perdão

Ama os teus inimigos, meu mestre dizia
Quando no Feitiço me instruía

Perdoar é ser sabiamente estúpido
Vestir o estandarte de um império de insignificâncias
Coroar o bobo
Fundir anéis de ouro
E fazer urinóis

Perdoar é a coisa mais sábia que um estúpido pode fazer
Perdoar é a coisa mais científica que um feiticeiro pode recomendar

Pode perdoar

Fala uma meretriz


"É melhor dar do que receber"
"Faça aos outros o que gostaria que fizessem com você"
"O bem feito volta em dobro"
"Faça-o bem sem olhar a quem"

"Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses. Dá a qualquer que te pedir; e ao que tira o que é teu, não lho reclames"

Fala um dedo


... [dobra-se lentamente]

Fala o infinitésimo


Sou apenas um salto
Que ousou ser
Entre eu e quase-mais-que-eu
Sou nada para os contadores
Sou tudo para os ourives
A hipérbole convergente da pequenez

Um infinito ao inverso
Num desunido universo

Sou como um conceito
Como um significado
Não tenho tamanho
Sou só um passo passado
Mas posso ter tamanho
Se for somado
A infinitos 'eus'
A que estou ligado

Sou sub-edificado

Ado ado ado ado ado ado ado ado ado ado ado

d(ado)

...dado dado dado dado dado dado dado...

Ado

Sou infinitamente nulo
E ainda assim, maior do que tudo

Porque eu não tenho significado
Eu sou significado

Falam as Manias


Ufl
Nnambihrak
Monlzuppfa
Nmaeqidii
Aevl
Aevl
Szviztkew
Aywiiteaudy

Errar Errar Errar Errar Errar

Orinppup
Nislyqqiq
Swazklt
Irj
Ir
R

Falam dois espelhos convergindo a um






Fala o túmulo


Sou um pedaço qualquer de terra mal moída
De uma nefastidão pouco justificada
De ter uma mulher que, um dia aqui caída
Não está mais neste chão, mas dir-se-á sepultada

Já foi-se sua poeira óssea em tempos remotos
Já volatilizou o seu necrochorume
Mas ainda em minha beira a pedra, em ditos rotos
Me diz o que não sou, funesta me assume

Como o nome se prende à coisa que nomeia!
O medo dessa sorte é o que minha terra suja
O que de mim se entende é que eu mesma matei-a!

Se a assassinou o amigo ou se morreu criança
O medo dessa morte a isso sobrepuja
Eu não sou um jazigo; eu sou só uma lembrança

Fala o abutre



Estou cansado de vocês
Não que não estivesse antes
Não esperam, ao invés
Abocanham seus amantes
Que nojo! Sinceramente
Comer carne crua
Comer sua amante
Como se fosse sua

Cansei de Filhos da Fome futucando em minha forma se como se come

Não quero meu nome em um bolo
Ou em uma conta de bar
Nem quero jardins de sims
Sins
Não quero um oceano em meu colo
Des-jejum! Bah!
Como se comesse
Não quero as vidas anti-extremas

Antes as algemas!

Eu não estou em um lugar
Nem em todo lugar
Nem em lugar nenhum
Sou o abutre e não estou em desjejum

(

Bem vindo, amor, ao sujo
Ao podre enferrujo
De mim você pode fugir
Mas como de você eu fujo?

Bem vindo, seu podre, ao mal lavado
Mal lavrado...
Não tema, não sou o fazido
Sou só o fado

)

Não garanto uma gota de arte
Ou mesmo a água de um cacto
Mas garanto deixar-te
No inverso de intacto

Há algo mais belo do que fundir-se a alguém?
Sou o prenúncio da morte, só uma lembrança também

Mas a morte comigo vive em carne
E acaba em guardanapos

O que há de túmulo em um abutre?
Que do morto, não da morte, se nutre
Temem isso! Temem a escuridão
A íntegra imensidão

Mas,...

Quem é a morte enfim?

A fuga, o fazido, a luz escura, o feitiço enfim?

Onde está?

Para onde vai?
Para onde
Para

...

Não fala a morte

domingo, 7 de julho de 2013

Efeito Pigmalião

Efeito Pigmalião



Esqueça-se de si
Quando eu disser "você"
Você, meu "você", é mais de mim
Que a Mona Lisa é mais Da Vinci
Que da Gioconda
"Você", amor, é minha arte
Uma homenagem de minha parte
Ao que esperava de quem você não é
Do mármore vivo
Que vejo no chão
Faço meu reino
De Pigmalião
E "Você", Galateia
Será sempre a mentira da pedra
Uma mulher rígida, estática, bela, fria e nua
Eternamente estendendo seus braços para mim
Por mais que eu lhe abrace
Beije, ame, grite, chute
Seu sorriso vive
E seus braços
Eternamente
Estendidos a mim



Não é como as outras
As vocês por aí...
Fracas, ferventes, frágeis
Explosivas, abruptas, tangíveis
Flores murchas, mortas, pisadas
Encolhidas no canto do meu quarto
Com medo de mim
O homem de barro
E sua mulher de pedra
Dois trogloditas do mundo moderno
Unidos por rocha e água
Sem ódio e sem mágoa
Só amor, raiva e risadas



Ah, Afrodite
Onde estás, Afrodite
Deusa que me sabe guerreiro
A cada puxão de ar
Mãe da minha vida na pedra
Mãe do sobrevivar
Desce de tua 
E faz meu amor verdadeiro



Da vida à minha Galateia
A mulher que com a mente moldei
A jóia de pedra-fogo
De cujo amor me vogo
Eu espero a vida
Mas a traga incontida
Escura, rígida, nua e livre
Mas viva
E viva, Galateia
Viva Galateia
A meulher
Que juntos
Firmaremos raízes de aço
No chão do mundo
E seremos
Serenos
Ser e nós
Nós
E nó
Ó
Afrodite!



Vive-me os desejos
Enquanto eu dormir
E com eles sonhar
Vive-me o ato de realizar

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Nua

Nua


Sabe-se que o pano é o pai da nudez
Pés nus a valsar no liso chão polido
Na certeza dérmica, um monstro abatido
Que dança esfolâncias e sangra sua tez

Nadia, amada Nadia, que luz te reluz?
Em que porto morre esse fio que te veste?
Em que curva rústica esconde tua peste?
Em que chaga vai, crista nua, à tua cruz?

Em que aspecto vai sola à tua sapatilha?
Em que liso passa a bochecha tremendo?
Em que frio te veste e em que quente de ardendo
Espelhais o sol fogueando, e fervilha?

Dançando sempre, nua ao pé da minha cama
Teu corpo me odeia, mas teu nu me ama

Sua indulgência é ser de alma tão Branca e crua
Que me falte, qual padre B do pretérito
A motivação de abrir meu Santo Inquérito
Na parte em que se declara "ela está nua!"

Nadia, não é certo que esteja vestida
Que a sua peça é a exposição declarada
De uma bailarina que escorre deitada
Se abre docemente, sem medo da vida

São nuas as brasas, as casas, as cores
Nuas são estradas e fadas do amor
Nua é a casca branca que estanca sem dor
Nuas são as ruas, as luas, as flores!

sábado, 29 de junho de 2013

Se você pudesse ter qualquer coisa...


Chave

     Três homens acampavam à beira de um riacho. Um deles era um valente veterano de guerra, conhecido por suas ações decisivas em mais de uma batalha. Outro era um magnata, dono de inúmeros bares e casas de prazer, influente e divertido. O terceiro era um simples chaveiro, solteiro, sem filhos, e com a maior parte da vida passada em silenciosa contemplação.
     O veterano acordou com sede, e foi ao riacho beber um pouco de água. A água movia-se calmamente, de forma quase hipnótica. Ao tocá-la, porém, seu fluxo constante e calmo foi interrompido pelo salto de uma enorme rã para fora dele. Graças às cicatrizes de sua alma, o veterano não se assustou, nem mesmo quando o sapo, com uma voz calma e monotônica, perguntou:
     -Se você pudesse ter qualquer coisa, o que teria?
     O veterano ponderou, apenas um pouco. Sabia que a pergunta era séria, e queria respondê-la muito seriamente, mas conhecia os perigos de ponderar demais. Enfim concluiu, absolutamente decidido:
    -Quereria o controle sobre o destino. Poder escolher o futuro de tudo e todos, especialmente o meu. Assim, todas as batalhas da vida seriam vencidas, e todos os caminhos seriam seguros.
   -Pois assim seja.
   O magnata acordou com sede. Sede e fome. Um pouco de vontade de sexo, mas isso sempre. A sede, pelo menos, podia matar. Foi ao lago, e também foi recebido pela rã. Levou um leve susto, mas estava acostumado a bizarrias muito maiores do que uma rã falante, em suas casas de fetiches.
   -Se você pudesse ter qualquer coisa, o que teria?
   O magnata não precisou pensar. Ninguém entendia melhor do que ele de desejos, e essa pergunta ele já havia se feito, e respondido, inúmeras vezes. Disse prontamente, saboreando um sonho:
   -Teria tudo o que quero. O poder de escolher quais são as minhas vontades, desde as mais fúteis às mais profundas, e tê-las satisfeitas sempre.
   -Pois assim seja
   O chaveiro acordou com sede. Cruzou as pernas, fechou os olhos, ponderou um pouco, e foi ao riacho saciá-la. Quando o sapo saltou, o homem levou um grande susto, mas rapidamente amenizado. Conhecia a importância aguda e a inutilidade crônica do medo. O mesmo lhe ocorreu quando o sapo falou:
   -Se você pudesse ter qualquer coisa, o que teria?
   O chaveiro sentou-se, cruzou as pernas, e meditou profundamente por um longo tempo. Sabia, em sua humildade, que podia fazer uma chave para qualquer fechadura, exceto para uma fechadura que não conhece. Enfim, percebeu que se era um chaveiro, só o que precisava era conhecer suas fechaduras.
   -Teria a melhor resposta para sua pergunta.
   -Pois assim seja

   O veterano mudou-se para uma terra distante, e começou a manipular seu futuro. Ganhou altíssimas patentes em tempos muito curtos, tornou-se famoso e renomado, rico e influente. Observava guerras distantes com seus poderes e decidia seus destinos. Fazia suas escolhas com justiça e respeito. Quando chegou-lhe a velhice, passou a adiar sua morte indefinidamente. A medida que os séculos passavam, o veterano começou a perder a certeza, antes absoluta, sobre o que devia escolher. Gradualmente se sentia mais confuso e perturbado com as consequências de suas escolhas, e cansava-se de ser Deus. Seus poderes pareciam cada vez menos uma bênção e cada vez mais um fardo. Percebia-se parcial demais em sua humanidade para controlar o destino. Queria fazer justiça, mas seus poderes em si eram injustos, e sempre seriam, enquanto ele vivesse. Um dia, ao levantar de sua cama, o veterano viu que escorregaria nos degraus e quebraria o pescoço. Decidiu que ali acabava sua jornada, e foi o único ser da história a cometer suicídio acidental. Logo antes de dar o passo que sabia que o mataria, concluiu que podia controlar todos os acontecimentos, mas não podia controlar o fato de que ele controlava os acontecimentos. Quando cansou-se desse poder, não teve como livrar-se dele, e quando tornou-se insuportável, teve de morrer. E assim era. "A batalha que não posso vencer é a batalha contra mim mesmo". E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo menos o autocontrole.

   O magnata voltou a sua mansão mais do que satisfeito, literalmente. Enfim poderia saciar sua infinita sede de poder, ou simplesmente não mais tê-la. Ponderou sobre qual dos dois caminhos seguir: decidiu brincar de poder um pouco. Tornou-se rei, mais tarde imperador, e seu império alastrou-se pelos quatro cantos do mundo. Também não morreu, pois podia ter o que quisesse. Quando um senso de imoralidade lhe tomava conta, ele o espantava, afinal não queria se sentir mal, nunca. Era infalível: qualquer coisa, por mais humana e enraizada que fosse, ele a espantava. Um dia, acordou em seu palácio e percebeu que tinha vontade de experimentar outras vidas. Imediatamente desejou dissolver seu império, e tornar-se um aldeão. Por séculos passeou por diversos ofícios, sempre entretendo-se. Foi ermitão, serviçal, nobre, burguês, prostituta, pedinte, soldado, e viajou o mundo todo. Era o homem mais feliz do mundo, de longe. Dezenas de milênios se passaram. Aos poucos, porém, surgia em seu âmago algo que apenas uma vida tão intensa pode gerar. Seus desejos passaram a ser menos intensos, menos curiosos. Já tivera tédio, e simplesmente o afastara, mas aquilo era diferente. Não estava cansado, estava desejoso da única coisa que nunca tentara: morrer. Sabia, intuitivamente, que morrer era ruim, e tentou afastar o desejo, mas não conseguiu. "Porque não consigo?" Rapidamente percebeu: não conseguia porque não queria. Adquirira o desejo de não mais desejar, o desejo de acabar, e não podia afastá-lo porque não queria afastá-lo. Ele podia mudar seus quereres, mas apenas quando quisesse mudá-los, e agora não queria. Não estava triste, nem se sentia impotente, apenas queria. Achou, inclusive, muito justo morrer. Assim, transmutou-se em um doente terminal. Já sentira todas as dores possíveis, por capricho e curiosidade, e achou digno morrer com dor. Em seu último suspiro, concluiu que embora pudesse escolher sua própria vontade, elas seriam sempre as vontades que ele tinha vontade de ter, logo sempre haveria uma vontade acima, e ele nunca controlaria totalmente aquilo que quer. "Com ou sem meus poderes, todo homem está infalivelmente preso ao que quer". E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo menos a frustração.

   Sob a sombra de uma figueira, o chaveiro meditava profundamente. Conhecia agora a resposta perfeita, a fechadura para a qual construiria a chave de sua vida. Não tinha nenhum poder, senão o de saber exatamente o melhor que podia fazer. Depois de alguns dias, voltou à sua oficina, e passou a fazer chaves mais complexas do que nunca. Seu trabalho tornou-se mais árduo, muito mais falho, e talvez até mais limitado, mas ele sabia exatamente o que fazer. Sentia-se sempre motivado, pois estava em íntimo contato com seus quereres mais profundos, com suas fechaduras mais complexas. Sabia que nunca abriria todas. Poderia ter desejado uma chave esqueleto, mas essa chave nunca abriria a si mesma. Poderia ter desejado fechaduras moldáveis, mas assim nunca abriria a fechadura que é a rigidez em si. Não tinha atalhos, não tinha formas óbvias de abrir suas portas, mas sabia como abrir a todas, e sabia que podia abrir a todas, afinal, era um chaveiro. Casou-se com uma camponesa doce e tolerante, e teve filhos sorridentes e calmos. Quando sentiu a velhice chegou, já havia aberto a porta da vida, e sabia que a seguinte era a porta da morte. Chamou seus filhos, e com paciência e confiança, ensinou-lhes seu ofício, dando-lhes a dádiva de saber sempre o melhor desejo a se ter. Depois, com doçura, fez sua última chave, e abriu sua última porta. "Se eu pudesse ter qualquer coisa, não estaria tão completo quanto se eu pudesse conquistar qualquer coisa." E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo.

domingo, 23 de junho de 2013

domingo, 16 de junho de 2013

ilimitado

]-∞,+∞[

Uma pedra
Pode ter um grama
Ou mil toneladas

Uma praia
Pode ter um milimetro
Ou mil quilometros

Uma planta
Micrômetros
Ou cem metros

Neste universo
De raios solares
E raios de Antares

De terras e jupiteres
Grãos
E superaglomerados
Qual é o tamanho máximo de um amor?

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Velado

Velado

Hoje eu não quero falar de amor
Dar fetiches de melaço aos jovens excitados
Hoje eu não quero falar de poesia
Batendo a bandeira em colegas passados
Hoje eu não quero essa filosofia
Perder-me em símbolos mal temperados
Hoje me recuso a falar de dor
O "é isso mesmmo" dos desencantados

Hoje
Estou cansado e focado
Pensando em comida
De braços cruzados detrás das costas
E respirando macio
Hoje
Minha alma é terracota
E guardará para sempre o reino de um silêncio
Não o silêncio do recém-órfão
Mas o do glutão entre garfadas
Não é não ter o que dizer
É não querer

Hoje
O orgulho me tange menos que a rosa
Que me tange menos que o pântano
Que me tange menos que o tanger
Que me tange menos que a linha reta espiral sem fuga
Que infalivelmente volta ao lugar do qual nunca saiu
Cansada de tanger

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Do queimar

Cinza é cinza, fumo é fumo

Tudo o que é vivo
Incandesce
Luminesce
Em gás vermelho explosivo

Um sol de soletude em terra
Da cor do fim da tarde
Arde
Crepita, berra

Irmana, no braço do homem
luz e fumaça
Cada qual, sonho passado, esvoaça
Sonhos realizados que somem

Cinza é cinza, fumo é fumo
cinza que sai, sai fumaça
Fumo que passa
Os dois cinzas sem rumo

E o que é ser cinza
De sinérgide massa
Que tudo, amorosa, abraça
E tudo despreza, ranzinza?

E o que é esvoaçar
Conhecendo o Universo
Construindo seu inverso
Mergulhando no vaio do ar

E o que é ficar
Sobrevir à incandescência
Fixo até a intumescência
De um viver que explodiu ao ar

Cinza morta
Nada que come o tudo
Imersa em sonho mudo
Que se aborta

Cinza é cinza, fumo é fumo

Cinza viva, cinza ovo
Que minha cinza é coque
Não descarte, estoque
Que eu vou queimar de novo!

Rica de carbono forte
Quer que o fogo repita
De tesão pírico crepita
Aversa à morte

Sabe que o fogo segundo
Que brota da cinza moída
Deixa os fumos terem vida
E com ele aerem o mundo

Em sumo
Deixe o fumo à sua via torta
Que a cinza está menos morta
Cinza é cinza, fumo é fumo

sábado, 18 de maio de 2013

Bandeira ao contrário


Encanto


Eu faço versos como quem ri
De puro alento, de grande encanto
Abre meu livro, se por agora
Lhe resta motivo algum de pranto

Meu verso é sexo, volúpia ardente...
A paz é esparsa e o ódio é vão
Salta nas veias, doce e contente
Cai, gota a gota, no coração

E nesses versos de alegria louca
Assim aos lábios vai beijo altive,
Deixando um morno úmido na boca

-Eu faço versos para quem vive



http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/desenc.htm



segunda-feira, 13 de maio de 2013

Arteísmo



Arteísmo

Ser cético e fazer arte
Que loucura juramentada!
O trabalho que não dá
Ir ao nu do universo
E voltar com belas roupas
Que trabalho que dá
Ver beleza no incerto
Cozinhar a arte em forno de cera
E tirá-la limpa
que se tiver de limpá-la
Será em chorume de cadáveres

Ser cético e fazer arte
É tirar perfume de pus
Ao rendimento pífio
De uma pluma por cão
E fazer malhas de pelos curtos

Ser cético puro
Se absolver das causas e dos efeitos
Ver-se mosca e sorrir-se mosca
Ver-se Deus e não sorrir
Porque, mosca, ziguezagueia?
Porque, Deus, Zaratustreia?

Simplificando as coisas
Que tipo de idiotas somos?
Ser cético sim
Mas fazer arte?

Um ladrão escuro na noite escura
Espia o crente que dorme
Num golpe de fome
Fura-lhe o peito inflado
Cérebros de pedra
Labirintos hepáticos
Ardores sangrentos
Coisas de crente
Nada importa ao nosso duas-caras

Rouba-lhe o coração
Frágil
Mas rico da mais universal das substâncias
O critério
Pai bastardo do império
Que é o tem-de-ser

Espreme o coração crente
Seca-lhe de sangue impuro
Orgulhoso, imperioso
Cura a casca seca
Com a mais franca e humilde permissividade
E recheia o órgão seco
Com as carnes do nunca-ser

E faz das tripas coração
E do coração, a mais insana das artes
Eternamente ladrão
Um órgão escuro na noite escura
Vivendo lirismos emprestados
E protegendo suas podres certezas
Imprestáveis
Sem critério
No amor do mais fiel dos fieis

Só não se limpa de fé
A arte do cético
Essa, por mais fina que seja
É a casca que no amor do cético sobeja

Dispensável
Após a cura da arte
Mas impregnada sem cura
À arte

E o tem-de-ser-não-sendo
O paradoxo de amar uma estatística
De amar a ausência de amor
E assim ter amor
É essa a suma obra
Do artesão cético

Meu sangue é pura linfa
Minha carne, podridão
Meu cérebro é um circuito elétrico
Com interruptor no coração

Uma parede escura na noite escura
A inevitável beira do certo
Da qual saltamos com asas falsas
Rumo ao simplesmente-escuro

Ser essa tautomeria
Ser, essa tautomeria
Ser, essa doença sem cura
Ser, essa bênção sem princípio
Ser um Deus escuro na noite escura

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Reflexões de um canoeiro


A solidão é a soma do que você é. É o momento em que grãos de identidade, lenta e transigentemente, afundam no leito da vida, e revelam-lhe a verdadeira profundidade. Você só é o que sabe quando ninguém está por perto. Você só sabe o que é quando ninguém está por perto.
A dor de estar só é a dor de bater a cabeça em um leito raso. É impossível mergulhar na vida quando não cabemos dentro dela, sequer sozinhos. Navegue seu rio, saia às margens, volte ao seu rio. Volta ao rio, canoeiro! E vê se afunda bem o remo, levanta poeira, faz dos seus amigos a profundidade que não afoga, e de si mesmo a profundidade que lhe permite afundar.

Homenagem ao compositor turco Fazil Say, metahomenagem a ao poeta turco Aşık Veysel


Kara toprak

Infrutesceste
Mãe fiel?

Tuas pedras coalesceste?
Do teu chão já emana mel?

Tuas mudas convalesceste?
Já choras do olho do céu?

Mãe quieta
Mãe asceta
Esconde seus defeitos
Trabalha, e sua água límpida
Sua água límpida
Que a lambe o fruto-homem
Maduro e fresco

---

Fruto-homem
Filho doce
Tua sede
Somente à semente
De néctar
Não se cimente

Farta-se, filho
Que tua mãe quer arder

terça-feira, 2 de abril de 2013

Simples, como deve ser


Nasce
Vive
Come
Morre

É simples, irmão!
Quer seu grande propósito? Taí.

Ah, mas eu não sou das grandiosidades espirituais?
Não sou o teórico de tudo?

Ah sim, sim, sou!
Mas isso é coisa pouca

Que eu faço no intervalo
Entre nascer e morrer
Antes de viver e depois de comer

Porque sabe, irmão, sobra tempo.
Bastante tempo.
Mas não se assuste. Quer ser grande?
Pra quê?

Quem é grande nasce mal nascido
Mal parido, mais cuspido

Quem é grande vive pouco
Que a vida é espaço
E ser grandemente ocupado

Quem é grande come demais
Sem prazer, sem satisfação
Só pela indulgência da fome

Quem é grande morre mal
E é duro de enterrar
Se se crema sobra cinza demais

Não, irmão, seja pequeno!
Nós nascemos fácil
Vivemos muito
Comemos bem
E morremos com um "tchauuuu!" pastelão

O resto é o resto
Coisa pouca
Coisa pequena
Ainda menor que o homem
Que já é pequeno
Que bom que é

Vai, faz o que quiser
Que eu sei que não é tão ruim assim
Pra você ficar se botando em jaula

A vida não paga
Mas também não cobra

Vai lá, relaxa, poxa!
Trabalha na repartição pública
E toca Udar e Sitar
E toda noite de sábado
Vai no Swing com a esposa

Vai, fuma maconha
Ou bebe demais
Ou come compulsivamente
Ou seja rabugento

Vai ter defeito!

Só não seja natimorto
Ou zumbi
Ou asceta
Ou imortal

Não se esqueça de
Nascer
Viver
Comer
Morrer

Do resto, ah, vai na sensibilidade!
Ou não, na racionalidade pontilista
Mas vai, poxa!
Faça do seu corpo um templo
Ou morra de overdose
(Que morrer pode, e deve)

Faça tatuagens, piercins
Ou só passe 50 anos como operador de telemarketing
Se aposente e vá pro interior, ficar falando mal do presente
Ta valendo.

O presente não é melhor que o passado
Que não é melhor que o futuro
Mas também não pior

O importante
Que não vou repetir (haja saco)
A gente pode fazer

Mas nem por isso precisamos parar
Que seguir em frente não tá ruim

Seja preguiçoso, seja obsessivo
Só evite matar
(Vai que a pessoa não comeu ainda)

Ouça música tibetana
Faça Liberty Spikes
Adote sono polifásico
Use Linux
Vista um robe de seda
Vire Vuduista
Compre um tablet
Faça hora extra
Seja vegan
Pratique Takewon-do
Aprenda Finlandês
E vá para a Turquia
Ou não
Ou, como eu já disse
Nada disso

Trabalhe
Odeie os corruptos
Seja viciado em redes sociais
Tome cervejinha com os amigos
Pegue as meninas
Case
Se divorcie
Ouça pagode
Ou não
Ou, como eu já disse
Nada disso

Não trabalhe
Veja televisão
Durma quinze horas por dia
Ao longo de todo o seu tempo
Ou não
Ou, como eu já disse
Nada disso

Só lembre-se de nascer, viver, comer e morrer
E não se esqueça de...
Ah, deixa pra lá