segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Axai e seus mundos [1-1]

Nya

     O mundo de Nya é um dos únicos mundos vivos do Universo Axai. Ele é chamado, pelos seus habitantes, de Ny, que é o nome do ser vivo que dá estrutura ao mundo. Mãe Ny, mais especificamente. Mãe Ny é uma árvore. Mas não é uma árvore comum: ela cresce em todas as direções do espaço. O centro de Ny é uma grande esfera de caule, recheada de raízes que se encontram no ponto onde está o coração de Ny. O exterior da esfera é revestido com uma lisa casca. Dessa esfera central crescem, em todas as direções, caules imensos, que se subdividem e ficam progressivamente mais finos a medida que sobem quilômetros de altura. Em todos os caules há pequenos ramos que terminam em folhas. Cada ramo dá folhas de uma cor, sempre em tons leves e agradáveis. Por toda a parte, os ramos dão frutos únicos, absolutamente distintos e jamais um será igual ao outro na forma, cor, estilo e sabor. Todos são comestíveis, e todos são saborosos. A seiva de Mãe Ny goteja de pequenas aberturas em sua casca e se acumula em caules em formato de bacia, formando fontes de seiva. A seiva de  Mãe Ny é muito doce e nutritiva para os habitantes de Nya.
     Estes habitantes são os Nyvall, "filhos de Ny", em tradução livre. O nome é adequado, pois todos crescem em Mãe Ny como frutos nos galhos, e depois se soltam, adquirindo vida "própria". Todo Nyval (um l indica singular) é dependente da mãe Ny, no sentido em que seus corações estão espiritualmente ligados. A vida de Ny é condicionada pela vida de seus filhos (sem eles, ela morreria), e a vida deles é condicionada pela vida de Mãe Ny (se algum dia Ny morrer, todos morrerão). Quando um Nyval nasce, forma-se uma ligação entre seu coração e do de Mãe Ny. Essa ligação enfraquece com o tempo e, um tempo exato depois (correspondente a aproximadamente mil, quatrocentos e dezenove dias da terra) essa ligação se rompe, matando sem dor o Nyval.
     Os Nyvall parecem-se muito com sementes, mas feitas de caule. São ovalados e possuem a mesma textura de Mãe Ny. Não há gravidade em Nya, então todos se movem exalando gases em alguma direção. O rosto dos Nyvall é característico, com apenas um orifício, que assume o papel de quatro sentidos. O corpo do Nyval é coberto por ramos semelhantes aos de Mãe Ny, com folhas e até frutos únicos. É uma grande diversão para os Nyvall comer os frutos do corpo de outros.
     Os Nyvall vivem e morrem como crianças e nunca tomam consciência do fato de que morrerão. São seres quase absolutamente puros, que vivem em harmonia com sua mãe e com sua frágil e infantil vida. Não compreendem abstrações nem criam definições ou nomes. Quase tudo em Nya é temporário, então nomes não se propagam. A própria palavra "brincar" não existe, porque os Nyvall não pensam em nomear a única coisa que fazem. "Vida", "Felicidade", "sociedade", não constam na língua de Nya. Os Nyvall vivem a explorar seus sentidos e seu senso de humor, que é quase absoluto. Os altos seres que já estiveram em Nya, principalmente Ayaky, dizem que o mundo é constante e incessantemente permeado por risadas de Nyvall.
     Mãe Ny possui consciência, e é um alto ser (possui conhecimentos do Omniverso). Surpreendentemente, alguns Nyall podem, através de definições puramente empíricas, compreender o Omniverso e elevar-se individualmente. Esses fatos levam alguns a considerar Nya um "mundo médio", pois embora a sociedade de Nya não o conheça, alguns seres isoladamente o descobrem. Mãe Ny pode comunicar-se diretamente com seus filhos, mas raramente o faz, porque não precisa.
     Existem quatro tipos de ligações entre os filhos de Mãe Ny (nomeadas pelos Ayaky). A ligação Syv é a mais baixa, relativamente rara, e indica um certo desgosto. Como para as crianças, a raiva dos Nyvall é esporádica e jamais se converte em ódio. Ligações Syv duram no máximo algumas horas, mas são perturbadoras para os Nyvall e mais ainda para Mãe Ny
     A segunda ligação é Izst, que é "uma indiferença harmônica e amigável".A grande maioria dos Nyvall tem essa ligação com todos os demais.  Os Nyvall tratam seus conhecidos como os humanos da terra não tratam amigos, ou até amantes, mas por trás da amabilidade profunda da relação Izst há uma certa indiferença, necessária para que os Nyvall sobrevivam emocionalmente à morte dos demais.
    A terceira ligação é Vnumi, a "amizade". Nyvall com essa ligação passam a manter-se sempre próximos, tocar-se com frequência, e riem muito mais do que os outros. Não são, surpreendentemente, muito comuns. Coisas como amizade são muito complexas para a mente simplista e sentimentista desses seres.
     A quarta ligação é Nyve, e é uma das coisas mais belas de toda a Falange Onírica. É raríssima , podendo se passar dezenas de anos sem um único par de Nyves em Nya. A ligação se forma entre os corações dos dois Nyall, do mesmo modo que estão ambos ligados a Mãe Ny. As ligações entre Ny e um casal de Nyves formam, dizem os Ayaky, o triângulo conceitual mais belo de Axai. Um par de Nyves para de brincar e de rir e passa a viver em função dessa relação, de uma forma profunda e espiritual. Tornar-se um Nyve é a única coisa que pode mudar o tempo de vida de um Nyval, pois os dois Nyves imediatamente igualam seus tempos de vida aritmeticamente (se, por exemplo, um Nyval com um dia de vida restante tornar-se Nyve de um com três, ambos viverão mais dois dias). Um casal de Nyves morre exatamente ao mesmo tempo, deixando Nya tão belamente quanto quando nela estiveram.
     Só há duas coisas permanentes em Nya. Uma é a própria Mãe Ny, e a outra é Siya, a sacerdotisa de Nya. Foi a primeira filha de Mãe Ny a nascer, e será a última a morrer. Siya é uma pequena esfera de caule coberta com folhas e possui olhos, além do orifício universal. Ela é a guardiã dos Nyall. Está sempre pendurada nos mais altos galhos de Mãe Ny (onde ficam os frutos mais saborosos, mas onde os Nyall não podem ir, pois há perigo de caírem para fora do mundo). O dever de Siya é não permitir que os outros tentem fugir para fora de Nya, porque são curiosos e não sabem que morrerão se afastarem-se demais da mãe. Siya tem paciência infinita e uma serenidade única. As vezes brinca com os irmãos mais novos, mas sempre em paz.
     Os Ayaky preveem que, como todo ser vivo, Ny nasceu (de emanações da Falange Real), vive, e um dia morrerá, trazendo fim a Nya. Os Ayaky sabem, com certeza, mas o que vos escreve não sabe dizer se há a possibilidade de Ny deixar alguns filhos para reconstruirem mundos como ela fez. Resta torcer, em nome da beleza do futuro, para que sim.

Guilherme Antonini
São Paulo, Brasil, Terra, Realidade, Falange Real, Omniverso
19 de setembro de 2011

Axai e seus mundos [Prefácio]

     Vou contar para vocês um segredo que não é um segredo (por isso mesmo, vou contar): eu tenho um Universo. Eu vejo nosso Universo como parte de um Omniverso, ou seja, o conjunto de tudo o que:


1) existe ou pode existir (no sentido de ser percebido pelos sentidos humanos como pertencente a este mundo), formando a Falange Real. Nosso Universo pertence a ela, assim como a terra, a gravidade e a matemática.

2) Já foi imaginado (concebido pela mente humana), formando a Falange Onírica. James Bond, Pernalonga ou o seu amigo imaginário de infância pertencem a esse campo.

3) Nunca foi imaginado, mas pode ser, formando a Falange Potencial. Nela, literalmente, está tudo o que você pode imaginar. Essa falange é infinita e, portanto, há um constante fluxo de idéias dela para a Falange Onírica, movimentadas por emanações da Falange Real, ou seja, os pensamentos humanos.

Se houver alguma coisa além dessas Falanges, esse algo não pode nem nunca poderá ser concebido pela mente humana (se pudesse estaria em uma delas), e portanto não convêm sequer definir algo externo ao Omniverso, porque definir é conceber, e se algo é conceptível, está dentro do Omniverso.

Sendo assim, eu criei um Universo que assumidamente paira sobre a Falange Onírica, sendo lentamente expandido pelas emanações da Falange Real. Nesse Universo coloco os meus mundos. Mundos que eu crio. Pequenos e simples, mas cheios de sentimentos e imagens. O Universo se chama Axai, e é dividido entre o baixo Axai (a maioria dos mundos fica lá), e o alto Axai. A diferença não é geográfica, depende da natureza dos mundos. Um mundo cuja população tem consciência da existência do Omniverso e de seu papel nele é um alto mundo. Naturalmente baixos mundos lentamente sobem, à medida em que descobrem as grandes verdades. Ayak é um exemplo de um alto mundo, e Ibis, Iaag e Nya são baixos mundos.

Dito isto, apresentarei no próximo post o primeiro mundo de Axai que eu descrevi plenamente. É um minúsculo e belíssimo mundo chamado Nya.

O caderno preto [42-42]

Alguns dizem que homem é animal
Outros dizem que não
Eu diria "calma"
"um homem...

Sem comer, é uma pedra
Sem parar de comer, um parasita
Sem dormir um zumbi
Sem parar de dormir um cadáver
Sem estudar um vegetal
Sem parar de estudar... bom... também

Sem fazer sexo é uma máquina
Agora, sem parar de fazer sexo
Ai sim, digo sem rodeios
É um animal

O caderno preto [41-42]

Eu
Com meus poliamores
Gosto de fingir que não conheço Vinicius de Moraes

Porque antes de conhecer Vinicius de Moraes
Eu conheci o orgulho de poetizar
Sobre o amor eterno enquanto durar

Poetas não se gostam tanto
Quanto leitores gostam de poetas
Nada pessoal
Mas não há nada pior
Do que descobrir que sua arte nova
Tem precursor

Odeio me identificar com ele
Odeio ser comparado com ele
Mas aqui entre eu e este poema
Fico feliz em não ser o único

Talvez minhas sereias
Ao conhecerem meus tormentos de amor
Usem Vinicius
Para me desesdruxular em si mesmas
E se não puderem me amar
Que me respeitem

O caderno preto [40-42]

O fim

Para o homem
A tudo se antecede um propósito
Exceto aos sentimentos
Os sentimentos são fetos de Deuses

Não a toa,
Nas religiões,
São a porta para Deus
Não são questionáveis

Agora, o sentido da vida
Falemos em um propósito para a vida
Os sentimentos são parte dela
A vida em todo, portanto,
Não pode ter propósito
Mas o viver, como o agir da vida
Ele pode, e deve ter um propósito
O propósito da vida
Deve ser um sentimento
Porque se não for
Não há outro, só por isso

E se achar isso baixo e triste
Para de achar, e sinta-se um Deus

O caderno preto [39-42]

Poesia minha
Não diga que és a mim
Diz-me "sou outro"
A vagar por este espaço
E conta-me uma história
Que em vida nunca ouvi
E faz-me um carinho
Que de mim não recebi

Escrever
É fazer a estátua de alguém
Com a própria carne
Para que, por um segundo
Perca-se da própria solidão
E sinta-se como os que não escrevem
Sinta-se sintonizado

Sinta-se amado
E, mais importante,
Ame
Dê vazão a um amor
Barrado pela realidade
Recusado pela sociedade
Mas inevitavelmente sentido
Gritando nas veias
Escrever é explodir

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Crítica ao ato de choramingar

Desmungo

'Minha vida é má comigo'
Eu te juro que não entendo
Que entender eu não consigo
Como você não está vendo

Onde está a sua vida?
Lá no céu, olhando a ti?
Lá nos infernos caída?
Não amigo, ela está aqui.

Como sua vida se chama?
Qual é sua identidade?
A vida da qual reclama
Ela mora em que cidade?

Dessa vida, qual o ofício?
Qual seu semblante grotesco?
A que te é tal malefício
Com ti tem que parentesco?

Pense nisso, tire o atraso
Compreende, agora vê?
Não adianta culpar o acaso
A sua vida é você

terça-feira, 6 de setembro de 2011

à bailarina ferida, Nadia Kafka

Extrasístole

A bela bailarina, amada dançarina
Segue com precisão o tempo do coração
Mas é de sua sina, ah, da pobre menina
De ter uma omissão na bela percussão

Como som de rotina, metrada, divina
Como numa explosão, perde se de seu chão
Surpresa repentina, a sua alma desafina
E bate em frouxidão, falha de condução

E toca o som dramático de não seguir
Sequer seus próprios passos, compassos enfim
E toca a arritmia da alma partir

Mas por trás dessa falha em tão puro rubi
A mais bela atitude tu tens, e assim
Por trás de toda a falha, sincera, sorri

O amor dentro de um processador

    Aos leigos, convêm explicar. Não adianta eu ficar fazendo metáforas com tecnologia que só engenheiros e afins, desinteressados pela minha obra, entenderiam.
   Um chip de computador (como um processador) é um aparelho que mede alguns micrômetros (milhonésimos de metros), mas possui dezenas de milhões de transistores. Um transistor é um aparelho que tem uma porta, por onde entra eletricidade, e um dreno, por onde pode sair. Se a bobina do transitor for energizada por outro circuito elétrico, a eletricidade sairá pelo dreno (posição de memória 1). Se não estiver, a eletricidade não sairá (posição de memória zero). É a associação desses milhões de transistores que gera os códigos binários que programam nossos computadores. Tudo o que você manda um computador fazer é codificado por minúsculos circuitos elétricos com zeros (transistores fechados) e uns (transistores abertos). Acho que isso bastará para a compreensão da metáfora que idealizei aqui.


Matriz de solidão

Circuitosonos
Mil universos de fios
Milhões de milhões de transistores
E todas as portas
Abertas a você
Todos os drenos
Voltados a mim
E você, distante!
A nanômetros de distância
Mas inacessivel

Minha lógica é binária
Ter qualquer coisa de você
Qualquer porta, qualquer processo
Ou não ter nada
Alguns caminhos
Vão a 11111111
Direto para mim
Mas alguma hora
Nem que seja o último bit

Há uma porta fechada
Um dreno vazio
E você fica a uma distância
Eletromagnéticamente infinita
Da minha esperança
Que, por sinal,
Já me falha à memória

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Denúncia da razão sofista

Reflexões de um mundo de sabedoria

Pierapian
É um mundo
Em que tudo é feito de espelho

Quando foi criado
O mundo foi feito para ser
O mais claro, mais visível
Onde tudo o que se olha, se vê
Por isso Pierus, seu arquiteto
Tornou todas as superfícies
Espelhos perfeitamente lisos

Na grande inauguração do mundo
Quando a fita foi cortada
Uma embaraçosíssima realização:
Pierapian não tinha fonte de luz!

Imediatamente os convidados
Foram levados a um bufê
E enquanto isso, galopantemente,
Pierus construiu um imenso sol
Mal feito, mas forte, muito forte

Agora sim,
Agora enfim,
Pierapian seria um mundo perfeito
Tudo visível reluzentemente
Não haveria dúvida,
Angústia, incerteza, ignorância
Tudo seria óbvio e belo

A segunda inauguração
Estourou os limites do embaraçoso
E caiu sobre o desastroso
Pierapian refletia a luz do sol
Com uma ofuscância tamanha
Que Pierus e os convidados
Ficaram permanentemente cegos
Só de olhar

Num mundo de espelhos
Só de espelhos
Nada é visível, nada é claro
E nada que se olha, se vê
Uma forte luz artificial
É eternamente rebatida por corpos vazios
E quem tentar entender qualquer coisa
Será atirado na escuridão da cegueira
Resta saber
Que perfeição é equilíbrio