Hoje eu comi demais. Grande novidade. A fome e a comida sempre foram, de uma certa forma, espiritualmente menosprezadas. De fato, parece estranho associar qualquer coisa espiritual com um hamburguer, mas todo homem sabe, no fundo de sua herança selvagem, que mesmo o amor compete com a fome como os mais fortes sentimentos de um homem. A fome, mesmo a fome por alimentos, é um buraco negro que, mesmo preenchido, voltará, e se não preenchido, crescerá até consumir tudo o que faz a vida valer a pena. Se a razão estiver no caminho, a fome enlouquece o homem. A comida, então, é a forma do homem de adiar a desgraça da fome, do desejo por mais.
Há outros tipos de fome. Mesmo dentro do mundo físico e animal, existem outros tipos de fome, como o desejo voraz e incansável de um homem por sexo. De certa forma, todo sentimento é um tipo de fome. A raiva é a fome de conseqüências a causas abertas, o amor é uma fome de si mesmo; o medo é a fome de não saber, e a curiosidade, mãe da ciência e da arte, é a fome de saber. A religião é fome de Deus, o ódio é fome de vingança, a própria busca pela felicidade é uma fome de satisfação.
Toda fome tem uma característica marcante: quando alimentada, ela diminui (se sacia) a curto prazo, e aumenta a longo prazo. Comer aumenta seu estômago. Fazer sexo incita um homem a desejá-lo. Raiva, medo, ódio, curiosidade tendem a se fixar quando cultuados. Religiões se fixam na mente do homem, o amor em si faz mais falta quando já se o teve.
A fome é o desejo por mais. É o que impede um homem de ver com indiferença a própria morte, de se importar com o fato de estar vivo. Sem fome, não há desejo, sem desejo, não há aspiração, sem aspiração, não há ação, ou motivação, ou interesse. É o princípio da apatia. Vida e morte tornam-se sinônimos, e quando surge uma pontada de fome de nada, esta prevalece àquela. É o princípio de um suicídio.
A fome de nada mata todos os demais tipos, é uma anti-fome, uma perda de humanidade e do senso de busca inerente a todos nós, que se manifesta de formar completamente diferentes, mas se origina sempre na fome, no desejo por algo mais. O desejo por algo menos é o suicídio da fome, o desejo se autodestruindo, desejando, como sempre deseja, mas desejando o próprio fim.
Depressão, estresse, inanição e falta de motivação são formas de fome de nada, é o desejo de não se satisfazer, o desejo de não desejar, essencialmente, o desejo de morrer.
Fome Crônica
Quando a fome surgiu
Criei mandíbulas enormes
Devorei toda a comida do universo,
Não bastou.
Reconhecendo que não era fome comum
fiz mais força
minhas mandíbulas cresceram.
Passei a devorar outras coisas
Todo tipo
Nada bastava.
Achei que era fome de vida
Crescendo ainda mais minha cavidade
Devorei pessoas
Durou muito tempo
até devorar todas
Todas as pessoas
Do universo
Não bastou.
Em desespero
Não mais medindo razão
Decidi parar de tentar coisas e tentei todas as coisas
Fiz forças enormes
descomunais
Me superpus a mim mesmo
Para que minhas mandíbulas ficassem maiores do que o universo
E colocando meus dentes em torno dele
Devorei o universo inteiro.
A certeza era errada
Não adiantou.
A fome não passava
E obviamente depois do universo
Não havia o que devorar.
Enfraquecido pela injusta medida
Regurgitei tudo
Tudo o que já comera
Se foi
Voltou a si
O universo não bastara
Então entendi que minha fome
Não era fome de comida, coisa, pessoa ou de tudo
Minha fome era fome de nada.
Convido o leitor, como convidei no começo do blog, a comer. E que a comida simbolize todas as fomes que esse leitor sente. Não se apresse a se saciar, aproveite a fome como aproveita a comida. Cronos, como o tempo, devora tudo o que cria no momento em que nasce, mas a Prudência trará o devorado passado à tona. O que você come hoje será você amanhã.