sexta-feira, 29 de junho de 2012

Visões de omniverso


Nautilus


Um homem lógico encontrou um monge louco sentado numa ponte, de olhos fechados e pés cruzados, calçando sandálias.
-O que você está fazendo, monge?
-Imaginando
-O que?
-Um universo
-Ora, tem um aqui fora!
-E um aqui dentro. Eu só escolhi.
-Mas você tem uma vida para viver
-Estou vivendo
-Não, está desperdiçando a vida no seu mundo
-Acho mais desperdício viver no mundo de outro do que no seu próprio.
-Você não pode criar algo tão grande e complexo quanto este Universo
-Não, mas, diferente de você, posso criar algo.
-Posso criar coisas neste mundo.
-Não. Pode mudar.
-Você também não pode imaginar nada que não tenha base neste mundo. Sua imaginação é uma versão reduzida da realidade
-A realidade também é a versão reduzida da realidade de alguém
-Como é?
-Deus sonha conosco.
-Mas Deus não tem outro Universo
-Quem disse?
-Como poderia?
-Não sei, sou uma versão reduzida da realidade desse outro universo
-Então está dizendo que uma entidade de um mundo superior sonha conosco, e sonhamos com entidades inferiores, continuando uma espécie de ciclo?
-Perfeito.
-Isso é ridículo
-Por isso, mais plausível
-Por acaso sua imaginação imagina?
-Não sei, a imaginação é individual. Deus não vê o que imagino.
-Mas você é influenciado por este mundo
-Claro, sou parte dele. E daí?
-E daí que sua imaginação não é original.
-Comparada a este mundo. Porque preciso comparar minha imaginação com a de Deus?
-...
-...
-E você é feliz?
-Quando quero
-E por que não quereria ser feliz?
-Por que eu quereria?
-É uma premissa humana
-Não onde eu vivo
-Escute, você não pode simplesmente ignorar este mundo
-Não estou falando com você? Não estou te imaginando.
-Mas...
-...
-E você prega esse discurso?
-A imaginação é individual
-Mas não acha certo imaginar?
-Acho individual
-Você está me irritando
-Então mate-me
-Não posso
-Por que?
-É proibido
-Quem fez essa regra?
-Deus fez
-Exato. Porque...
-Já sei onde quer chegar. Não adianta te matar na minha imaginação, isso não resolve o problema
-Não neste mundo. Resolve no seu
-Mas de que adianta?
-Se morar no seu mundo, de tudo.
-Porque não se deixa morrer então, porque ainda come ou dorme neste mundo, pouco que seja?
-Para não morrer.
-Mas você morreria neste mundo
-No meu também. Assim como você precisa imaginar de vez em quando, para se completar, eu preciso realizar, de vez em quando, para me completar.
-Imaginar, então, é o propósito da sua vida?
-Não, é a forma como vivo. Ser real não é o propósito da sua.
-Qual o sentido da sua vida?
-Nenhum e todos
-Como?
-Nenhum, porque sou Deus, e como realizo o que quero, não há propósito. Todos, porque tudo o que realizo é porque quis.
-Isso não faz sentido.
-Não para um mortal

O homem racional sentara-se ao lado do monge louco e ficou a assistir à eclosão de várias aranhinhas de ovos, numa das toras da ponte.
-E quando morremos? A imaginação desaparece
-A realidade também
-Mas o que fizemos nela fica
-Assim como em meu mundo
-Seu mundo morre com você
-O que já foi criado não é descriado, apenas muda
-Mas ninguém pode aproveitar seu mundo
-Exceto eu
-Isso não é egoísta? Construir um mundo que ninguém mais pode aproveitar?
-Não. Deus faz isso, e ninguém além dele aproveita a realidade
-Porque não?
-Porque não lhes pertence. “Aproveitar” é imaginar, ser Deus.
-Não é não
-Para mim é.
-Pare de simplesmente justificar tudo dizendo que é certo no seu mundo!
-Depois de você
-...

Desistindo silenciosamente do louco, o homem racional seguiu rumo através da ponte. Por mais que tentasse se concentrar no caminho que trilhava, não conseguia tirar a teoria do monge louco da cabeça. Era racional, racional demais para simplesmente aceitar se opor àquilo. Deitou-se para dormir ao relento, e não conseguiu. A ideia da imaginação como concepção do Universo o perturbava profundamente. Decidiu voltar à ponte. Foi uma longa e tortuosa trilha, durante a madrugada, o que o deu mais tempo para pensar. Queria simplesmente provar que ninguém o imaginava. Isso o velho monge não havia demonstrado! Como podia ter tanta certeza de que Deus o concebera com a imaginação?
Chegando à ponte pelo amanhecer, não viu mais o monge. Tinha muito no que pensar. Sentou-se na ponte e começou a meditar. Era pacífico estar ali, pendurado no abismo, sustentado pela estrutura de madeira, mas sentindo-se ser puxado para aquele vazio escuro abaixo. Foi ai que o viu.
O homem racional viu outro homem, um homem diferente, que não era exatamente racional nem exatamente louco, mas uma combinação das duas, de uma forma estranhamente complexa. Entendeu que esse homem era Deus.
Deus estava escrevendo. Escrevendo uma história. Parou para ler e se surpreendeu profundamente ao perceber que era a sua. Por um momento não compreendeu exatamente o significado disso, mas logo percebeu que não havia mais o que discutir com o fado. Ele havia sido imaginado pelo monge louco, sentado na ponte de seu mundo, e toda a sua vida estava determinada pela vontade do monge louco. Ou quase toda, ainda podia imaginar.
O monge louco continuava sentado na ponte.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Em resposta a Elias Nasser


Néctar

A função críptica do amor
A melhor barganha para a natureza
Ganha vida em troca de um pouquinho de sabor
Assim se intercalam, mantendo o reprodutor
Num inconsciente sonho de beleza
Não ter/Desejo e Ter/Torpor

domingo, 24 de junho de 2012

Amor, inocência, sofrimento...



Luz suja

Meu coração ressecado
Porque amores exumaste?
Quando digo que te afaste
Tanto te vejo cercado

E agora essa luz-menina
É a luz de um choque elétrico
E o escuro de um caixão tétrico
Onde se lê: "amou Marina"

Como a baga envenenada
Só mata se desejada
Mas, em alma, é puro lume

Eu te deixo imaculada
Para ter a alma lavada
Em um balde de chorume!

sábado, 16 de junho de 2012

A Sorte está lançada, a Arte está fechada.


Cisão

Como jovem pardalzinho
De asa maturada
Voa, meu poemazinho
Sua sorte está alçada
Agora liberto
Tímido e curioso
Voa maljeitoso
Tentando as alturas
E eu, balançando
Harmonicamente em meu galho
Choro uma lágrima de mãe pardal
Como se uma parte de mim
Agora não fosse mais eu
E o medo maduro
Da impotência minha
Perante esse poema-indivíduo
Balança harmonicamente
Sobre minha desarmônica mente
Mas se ele olha para trás
Viro a cara e me escondo
Voa, poeminha, voa!
Me perca de vista
No espaço do tempo
Vá passear pelas janelas
Ser alvo de amores e pedras
E, seja o que for
Seja o que é
O que um dia eu fui
Depois que eu não o for
Depois que eu nada for
Você baterá suas asinhas maduras
E piará a história
Nua e invasiva
Da casca que quebrou
Da mãe não mais viva
Do ovo que o gerou
Se o som soará ecoante
Reflexo em elípticos, elísicos espelhos;
Ou se, abafado e distante,
No aterro da arte será fio de cabelo
Eu, pardalzinho morto,
Não posso prever
Não vindo o anjo Gabriel
Nunca vou saber
Voa, pardalzinho, voa!
Deixa tua mãe morrer
E alça-te ao tudo-eternamente-feito
A única eternidade certa
Num mundo criativamente perfeito
E deixa a porta aberta
Que irmãos seus
Como estrelas nos céus
Virão te dar força
E compor, monísticos, contigo
A colorida sombra da minha vida
Numa existência por si só, a la Sartre-Nietzsche
E quando deste mundo eu me for
Virar só o carbono do pardal
Tudo o que fiz em vida, como ti, poema
No eterno me representará
 Não faça fardo disto, porém
Te designo eterno pardal-filhote
Inocentemente a ser-te
Ser-me
Um germe do eterno jardim de mim
Tudo o que serei no eterno-feito
Agora vai
Voa, pardalzinho, voa
E faz seus filhos
Nos olhos do Argos-mundo
Ensina os pavões a voar
E alça-te ao tudo-em-que-há-beleza
A infinda rede que agrega
A Substância principal da Natureza
E do que não te-é te cega
Atinge o Ser
Mais do que ser
Premissa de toda arte
Ser feito perfeito
Para a finalidade de representar-te
Mais do que viver, pardalzinho
Existe

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Augusto dos anjos e outras inspirações negras, em um poema cuspido da consciência crua

Cadáveres
Paredes de argamassa de pele escura
Necrose mefítica sorvendo o ar fétido
Vapor condensando-se sobre uma panela
A cozer-se no fogo de uma caveira
Vidro quebrado
Ruínas
Olhos furiosos
Carniça
Molhada de molho sangue
No banquete do inevitável
O sabor necrofítico
Da carne-lepra moída
Esfregada no rosto frio
E o cálice do sangue de cristo
Hoje dá suco de bolor

O mundo cheira
Rostos paralisados
Num medo eterno
Pânico de morte
Derretendo com o chacoalhar do caldeirão
Onde condensa o olhar
Dos cães famintos
Sarnentos
Sarnas acaninadas
Doença somos nós
A enfermidade é que vive

Pão vivo
Carne e sangue
Vinho tinto de graxa
Capas de gordura saponificando
À cinza de um tempo que parou
Treva vermelha
Bocas esganiçadas
Lambendo os beiços
Pelo putrefo estigma
Esperando o banquete do existir
Adiado para o fim da eternidade
Servirá um universo podre
Desfalecido de podre
Ao não-mais-haver
Monstro faminto por tudo
E por nada
Nada que haverá
E que há

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Até Eros é divino, e o divino é natural.

Eros

Naturalíssimo amor de jardim
O teixo, em poligâmico amor justo
Toca as zonas erógenas do arbusto
No vai e vem vivo do vento sem fim

A lascivissima orgia dos bambus
Rolam na nua grama as nuas flores
Sem pudor dando as excitadas cores
À vista voyeuristica da luz

E vendo o natural, delicioso,
Enxertando o sexual e o amoroso
Perdido em inexorável beleza

Está, num escuro canto agachado
O homem, tímido quieto e apudorado
Se masturbando para a natureza!

Mais poeminhas espremidos

Do beijo

É uma fera perfumada
Um doce à beira do abismo
É uma flor tão colorada
Que me passou daltonismo

Três trovas travadas III

I

As que eu digo muito amar
Gosto, mas não amo não
Só a que eu mando ao tal lugar
Que loucura, coração!

II

Esse tal Doxo eu queria
Ver pensar por sua maneira
Deve ter mente vazia
Para ele só mandam besteira!

III

Enquanto tagarelamos
Sobre o avião que caiu
Tantos mortos não notamos
Quanto os que se discutiu

sábado, 2 de junho de 2012

Horror

Que nomes responderão pelas vidas?

Que causa a causa do viver anula?
Como explicar tantas almas perdidas
No estige carmesim-sangue de Houla?