Nautilus
Um homem lógico encontrou um monge louco sentado numa ponte, de olhos fechados e pés cruzados, calçando sandálias.
-O que você está fazendo, monge?
-Imaginando
-O que?
-Um universo
-Ora, tem um aqui fora!
-E um aqui dentro. Eu só escolhi.
-Mas você tem uma vida para viver
-Estou vivendo
-Não, está desperdiçando a vida no seu mundo
-Acho mais desperdício viver no mundo de outro do que no seu próprio.
-Você não pode criar algo tão grande e complexo quanto este Universo
-Não, mas, diferente de você, posso criar algo.
-Posso criar coisas neste mundo.
-Não. Pode mudar.
-Você também não pode imaginar nada que não tenha base neste mundo. Sua imaginação é uma versão reduzida da realidade
-A realidade também é a versão reduzida da realidade de alguém
-Como é?
-Deus sonha conosco.
-Mas Deus não tem outro Universo
-Quem disse?
-Como poderia?
-Não sei, sou uma versão reduzida da realidade desse outro universo
-Então está dizendo que uma entidade de um mundo superior sonha conosco, e sonhamos com entidades inferiores, continuando uma espécie de ciclo?
-Perfeito.
-Isso é ridículo
-Por isso, mais plausível
-Por acaso sua imaginação imagina?
-Não sei, a imaginação é individual. Deus não vê o que imagino.
-Mas você é influenciado por este mundo
-Claro, sou parte dele. E daí?
-E daí que sua imaginação não é original.
-Comparada a este mundo. Porque preciso comparar minha imaginação com a de Deus?
-...
-...
-E você é feliz?
-Quando quero
-E por que não quereria ser feliz?
-Por que eu quereria?
-É uma premissa humana
-Não onde eu vivo
-Escute, você não pode simplesmente ignorar este mundo
-Não estou falando com você? Não estou te imaginando.
-Mas...
-...
-E você prega esse discurso?
-A imaginação é individual
-Mas não acha certo imaginar?
-Acho individual
-Você está me irritando
-Então mate-me
-Não posso
-Por que?
-É proibido
-Quem fez essa regra?
-Deus fez
-Exato. Porque...
-Já sei onde quer chegar. Não adianta te matar na minha imaginação, isso não resolve o problema
-Não neste mundo. Resolve no seu
-Mas de que adianta?
-Se morar no seu mundo, de tudo.
-Porque não se deixa morrer então, porque ainda come ou dorme neste mundo, pouco que seja?
-Para não morrer.
-Mas você morreria neste mundo
-No meu também. Assim como você precisa imaginar de vez em quando, para se completar, eu preciso realizar, de vez em quando, para me completar.
-Imaginar, então, é o propósito da sua vida?
-Não, é a forma como vivo. Ser real não é o propósito da sua.
-Qual o sentido da sua vida?
-Nenhum e todos
-Como?
-Nenhum, porque sou Deus, e como realizo o que quero, não há propósito. Todos, porque tudo o que realizo é porque quis.
-Isso não faz sentido.
-Não para um mortal
O homem racional sentara-se ao lado do monge louco e ficou a assistir à eclosão de várias aranhinhas de ovos, numa das toras da ponte.
-E quando morremos? A imaginação desaparece
-A realidade também
-Mas o que fizemos nela fica
-Assim como em meu mundo
-Seu mundo morre com você
-O que já foi criado não é descriado, apenas muda
-Mas ninguém pode aproveitar seu mundo
-Exceto eu
-Isso não é egoísta? Construir um mundo que ninguém mais pode aproveitar?
-Não. Deus faz isso, e ninguém além dele aproveita a realidade
-Porque não?
-Porque não lhes pertence. “Aproveitar” é imaginar, ser Deus.
-Não é não
-Para mim é.
-Pare de simplesmente justificar tudo dizendo que é certo no seu mundo!
-Depois de você
-...
Desistindo silenciosamente do louco, o homem racional seguiu rumo através da ponte. Por mais que tentasse se concentrar no caminho que trilhava, não conseguia tirar a teoria do monge louco da cabeça. Era racional, racional demais para simplesmente aceitar se opor àquilo. Deitou-se para dormir ao relento, e não conseguiu. A ideia da imaginação como concepção do Universo o perturbava profundamente. Decidiu voltar à ponte. Foi uma longa e tortuosa trilha, durante a madrugada, o que o deu mais tempo para pensar. Queria simplesmente provar que ninguém o imaginava. Isso o velho monge não havia demonstrado! Como podia ter tanta certeza de que Deus o concebera com a imaginação?
Chegando à ponte pelo amanhecer, não viu mais o monge. Tinha muito no que pensar. Sentou-se na ponte e começou a meditar. Era pacífico estar ali, pendurado no abismo, sustentado pela estrutura de madeira, mas sentindo-se ser puxado para aquele vazio escuro abaixo. Foi ai que o viu.
O homem racional viu outro homem, um homem diferente, que não era exatamente racional nem exatamente louco, mas uma combinação das duas, de uma forma estranhamente complexa. Entendeu que esse homem era Deus.
Deus estava escrevendo. Escrevendo uma história. Parou para ler e se surpreendeu profundamente ao perceber que era a sua. Por um momento não compreendeu exatamente o significado disso, mas logo percebeu que não havia mais o que discutir com o fado. Ele havia sido imaginado pelo monge louco, sentado na ponte de seu mundo, e toda a sua vida estava determinada pela vontade do monge louco. Ou quase toda, ainda podia imaginar.
O monge louco continuava sentado na ponte.