Chave
Três homens acampavam à beira de um riacho. Um deles era um valente veterano de guerra, conhecido por suas ações decisivas em mais de uma batalha. Outro era um magnata, dono de inúmeros bares e casas de prazer, influente e divertido. O terceiro era um simples chaveiro, solteiro, sem filhos, e com a maior parte da vida passada em silenciosa contemplação.
O veterano acordou com sede, e foi ao riacho beber um pouco de água. A água movia-se calmamente, de forma quase hipnótica. Ao tocá-la, porém, seu fluxo constante e calmo foi interrompido pelo salto de uma enorme rã para fora dele. Graças às cicatrizes de sua alma, o veterano não se assustou, nem mesmo quando o sapo, com uma voz calma e monotônica, perguntou:
-Se você pudesse ter qualquer coisa, o que teria?
O veterano ponderou, apenas um pouco. Sabia que a pergunta era séria, e queria respondê-la muito seriamente, mas conhecia os perigos de ponderar demais. Enfim concluiu, absolutamente decidido:
O veterano ponderou, apenas um pouco. Sabia que a pergunta era séria, e queria respondê-la muito seriamente, mas conhecia os perigos de ponderar demais. Enfim concluiu, absolutamente decidido:
-Quereria o controle sobre o destino. Poder escolher o futuro de tudo e todos, especialmente o meu. Assim, todas as batalhas da vida seriam vencidas, e todos os caminhos seriam seguros.
-Pois assim seja.
O magnata acordou com sede. Sede e fome. Um pouco de vontade de sexo, mas isso sempre. A sede, pelo menos, podia matar. Foi ao lago, e também foi recebido pela rã. Levou um leve susto, mas estava acostumado a bizarrias muito maiores do que uma rã falante, em suas casas de fetiches.
O magnata acordou com sede. Sede e fome. Um pouco de vontade de sexo, mas isso sempre. A sede, pelo menos, podia matar. Foi ao lago, e também foi recebido pela rã. Levou um leve susto, mas estava acostumado a bizarrias muito maiores do que uma rã falante, em suas casas de fetiches.
-Se você pudesse ter qualquer coisa, o que teria?
O magnata não precisou pensar. Ninguém entendia melhor do que ele de desejos, e essa pergunta ele já havia se feito, e respondido, inúmeras vezes. Disse prontamente, saboreando um sonho:
-Teria tudo o que quero. O poder de escolher quais são as minhas vontades, desde as mais fúteis às mais profundas, e tê-las satisfeitas sempre.
-Pois assim seja
O chaveiro acordou com sede. Cruzou as pernas, fechou os olhos, ponderou um pouco, e foi ao riacho saciá-la. Quando o sapo saltou, o homem levou um grande susto, mas rapidamente amenizado. Conhecia a importância aguda e a inutilidade crônica do medo. O mesmo lhe ocorreu quando o sapo falou:
-Se você pudesse ter qualquer coisa, o que teria?
O chaveiro sentou-se, cruzou as pernas, e meditou profundamente por um longo tempo. Sabia, em sua humildade, que podia fazer uma chave para qualquer fechadura, exceto para uma fechadura que não conhece. Enfim, percebeu que se era um chaveiro, só o que precisava era conhecer suas fechaduras.
-Teria a melhor resposta para sua pergunta.
-Pois assim seja
O veterano mudou-se para uma terra distante, e começou a manipular seu futuro. Ganhou altíssimas patentes em tempos muito curtos, tornou-se famoso e renomado, rico e influente. Observava guerras distantes com seus poderes e decidia seus destinos. Fazia suas escolhas com justiça e respeito. Quando chegou-lhe a velhice, passou a adiar sua morte indefinidamente. A medida que os séculos passavam, o veterano começou a perder a certeza, antes absoluta, sobre o que devia escolher. Gradualmente se sentia mais confuso e perturbado com as consequências de suas escolhas, e cansava-se de ser Deus. Seus poderes pareciam cada vez menos uma bênção e cada vez mais um fardo. Percebia-se parcial demais em sua humanidade para controlar o destino. Queria fazer justiça, mas seus poderes em si eram injustos, e sempre seriam, enquanto ele vivesse. Um dia, ao levantar de sua cama, o veterano viu que escorregaria nos degraus e quebraria o pescoço. Decidiu que ali acabava sua jornada, e foi o único ser da história a cometer suicídio acidental. Logo antes de dar o passo que sabia que o mataria, concluiu que podia controlar todos os acontecimentos, mas não podia controlar o fato de que ele controlava os acontecimentos. Quando cansou-se desse poder, não teve como livrar-se dele, e quando tornou-se insuportável, teve de morrer. E assim era. "A batalha que não posso vencer é a batalha contra mim mesmo". E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo menos o autocontrole.
O magnata voltou a sua mansão mais do que satisfeito, literalmente. Enfim poderia saciar sua infinita sede de poder, ou simplesmente não mais tê-la. Ponderou sobre qual dos dois caminhos seguir: decidiu brincar de poder um pouco. Tornou-se rei, mais tarde imperador, e seu império alastrou-se pelos quatro cantos do mundo. Também não morreu, pois podia ter o que quisesse. Quando um senso de imoralidade lhe tomava conta, ele o espantava, afinal não queria se sentir mal, nunca. Era infalível: qualquer coisa, por mais humana e enraizada que fosse, ele a espantava. Um dia, acordou em seu palácio e percebeu que tinha vontade de experimentar outras vidas. Imediatamente desejou dissolver seu império, e tornar-se um aldeão. Por séculos passeou por diversos ofícios, sempre entretendo-se. Foi ermitão, serviçal, nobre, burguês, prostituta, pedinte, soldado, e viajou o mundo todo. Era o homem mais feliz do mundo, de longe. Dezenas de milênios se passaram. Aos poucos, porém, surgia em seu âmago algo que apenas uma vida tão intensa pode gerar. Seus desejos passaram a ser menos intensos, menos curiosos. Já tivera tédio, e simplesmente o afastara, mas aquilo era diferente. Não estava cansado, estava desejoso da única coisa que nunca tentara: morrer. Sabia, intuitivamente, que morrer era ruim, e tentou afastar o desejo, mas não conseguiu. "Porque não consigo?" Rapidamente percebeu: não conseguia porque não queria. Adquirira o desejo de não mais desejar, o desejo de acabar, e não podia afastá-lo porque não queria afastá-lo. Ele podia mudar seus quereres, mas apenas quando quisesse mudá-los, e agora não queria. Não estava triste, nem se sentia impotente, apenas queria. Achou, inclusive, muito justo morrer. Assim, transmutou-se em um doente terminal. Já sentira todas as dores possíveis, por capricho e curiosidade, e achou digno morrer com dor. Em seu último suspiro, concluiu que embora pudesse escolher sua própria vontade, elas seriam sempre as vontades que ele tinha vontade de ter, logo sempre haveria uma vontade acima, e ele nunca controlaria totalmente aquilo que quer. "Com ou sem meus poderes, todo homem está infalivelmente preso ao que quer". E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo menos a frustração.
O magnata voltou a sua mansão mais do que satisfeito, literalmente. Enfim poderia saciar sua infinita sede de poder, ou simplesmente não mais tê-la. Ponderou sobre qual dos dois caminhos seguir: decidiu brincar de poder um pouco. Tornou-se rei, mais tarde imperador, e seu império alastrou-se pelos quatro cantos do mundo. Também não morreu, pois podia ter o que quisesse. Quando um senso de imoralidade lhe tomava conta, ele o espantava, afinal não queria se sentir mal, nunca. Era infalível: qualquer coisa, por mais humana e enraizada que fosse, ele a espantava. Um dia, acordou em seu palácio e percebeu que tinha vontade de experimentar outras vidas. Imediatamente desejou dissolver seu império, e tornar-se um aldeão. Por séculos passeou por diversos ofícios, sempre entretendo-se. Foi ermitão, serviçal, nobre, burguês, prostituta, pedinte, soldado, e viajou o mundo todo. Era o homem mais feliz do mundo, de longe. Dezenas de milênios se passaram. Aos poucos, porém, surgia em seu âmago algo que apenas uma vida tão intensa pode gerar. Seus desejos passaram a ser menos intensos, menos curiosos. Já tivera tédio, e simplesmente o afastara, mas aquilo era diferente. Não estava cansado, estava desejoso da única coisa que nunca tentara: morrer. Sabia, intuitivamente, que morrer era ruim, e tentou afastar o desejo, mas não conseguiu. "Porque não consigo?" Rapidamente percebeu: não conseguia porque não queria. Adquirira o desejo de não mais desejar, o desejo de acabar, e não podia afastá-lo porque não queria afastá-lo. Ele podia mudar seus quereres, mas apenas quando quisesse mudá-los, e agora não queria. Não estava triste, nem se sentia impotente, apenas queria. Achou, inclusive, muito justo morrer. Assim, transmutou-se em um doente terminal. Já sentira todas as dores possíveis, por capricho e curiosidade, e achou digno morrer com dor. Em seu último suspiro, concluiu que embora pudesse escolher sua própria vontade, elas seriam sempre as vontades que ele tinha vontade de ter, logo sempre haveria uma vontade acima, e ele nunca controlaria totalmente aquilo que quer. "Com ou sem meus poderes, todo homem está infalivelmente preso ao que quer". E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo menos a frustração.
Sob a sombra de uma figueira, o chaveiro meditava profundamente. Conhecia agora a resposta perfeita, a fechadura para a qual construiria a chave de sua vida. Não tinha nenhum poder, senão o de saber exatamente o melhor que podia fazer. Depois de alguns dias, voltou à sua oficina, e passou a fazer chaves mais complexas do que nunca. Seu trabalho tornou-se mais árduo, muito mais falho, e talvez até mais limitado, mas ele sabia exatamente o que fazer. Sentia-se sempre motivado, pois estava em íntimo contato com seus quereres mais profundos, com suas fechaduras mais complexas. Sabia que nunca abriria todas. Poderia ter desejado uma chave esqueleto, mas essa chave nunca abriria a si mesma. Poderia ter desejado fechaduras moldáveis, mas assim nunca abriria a fechadura que é a rigidez em si. Não tinha atalhos, não tinha formas óbvias de abrir suas portas, mas sabia como abrir a todas, e sabia que podia abrir a todas, afinal, era um chaveiro. Casou-se com uma camponesa doce e tolerante, e teve filhos sorridentes e calmos. Quando sentiu a velhice chegou, já havia aberto a porta da vida, e sabia que a seguinte era a porta da morte. Chamou seus filhos, e com paciência e confiança, ensinou-lhes seu ofício, dando-lhes a dádiva de saber sempre o melhor desejo a se ter. Depois, com doçura, fez sua última chave, e abriu sua última porta. "Se eu pudesse ter qualquer coisa, não estaria tão completo quanto se eu pudesse conquistar qualquer coisa." E deixou o mundo, deliberadamente, tendo conhecido tudo.