domingo, 21 de agosto de 2011

O caderno preto [36-38]

Blá

Falar
É a perversão aguda de poetizar
É abortar fetos de idéias
É quase pensar, quase ensinar
Mas não é nenhum deles
Nem nada

Falar não é falar com alguém
É falar para alguém
Quem fala não ganha

Falar é não dizer nada
Quando se fala para alguém
Quem ouve não ganha

Conversar é atropelar-se
Perder-se em si, tropeçar
Correr para acompanhar
E falar sem dizer
Com o único e vazio intuito
De falar

Ah, e como percebe o poeta
Que em seus escritos nada é em vão
Seja por um segundo ou um ano
Cada verso fermentou
O tempo que devia
É o sabor da poesia

Quando se fala
E, por acaso, se ouve algo bom
É mal aproveitado
Logo regurgitado
No cartório deserto do passado
E morre

Não que a poesia não acabe assim
Mas quem fala dá sedativos à memória
Quem escreve ainda tem chance

Tudo o que já foi dito morreu
Do que foi escrito, apenas
O que não se transcreveu e se apagou

Um escrito pode ser dito e redito
Tanto quanto dura o papel
E se um dia, após anos de esquecimento
Alguém abrir um velho baú
E, por acaso, gostar da velharia
Ela revive

Poetizar é se prolongar
É valer mais
É ser mais
É ser, enfim
Mas do que um álbum de fotos
Sem volta

Ainda quem fala sozinho
E não com alguém
Ao menos está pensando

Falar sozinho
É falar com alguém
Falar consigo mesmo
Pensar com a voz
É dar vida ao pensamento
E vê-lo bem

"Sozinho" mesmo
Fala quem conversa
Porque nesse pingue-pongue
Não há tempo para ouvir
Ouvir de verdade, profundo
Só responder

Melhor escrever, ainda
Mas ao menos sozinhos
Garantimos a sintonia perfeita
Entre o falante e o ouvinte
Aquele só fala quando o outro está pronto
Para ouvir

Como na poesia
O leitor lê no seu ritmo
E o escritor escreve no seu

Aproveitar bem as palavras
É qualidade que se desenvolve
Mas numa conversa é impossível

Falar não estimula
A autenticidade
É fácil escrever rápido como falar
E se por acaso, por um deslize
Algo for pouco ou mal pensado (e acontece)
É só apagar

Quando falamos um erro
Nos perdemos na vergonha
Tentando consertar

Falando sozinho
Também se houver erro
Basta ignorar

Justamente por esse poder
De estar mais certa
A escrita é deserta
Quando se fala bem
É fácil ter uma razão
Atificial

Basta treinar
E na hora de falar
Correr
Não deixar-se acompanhar
E o opositor se perder
E fim

Tem razão quem pensa mais rápido
E assim o canalha ignorante
Carismático, dançante
É tido como sábio
E ganha um poder
Desmerecido

Nossa cultura
Toda essa pressa
O futuro esquecido
São frutos da velocracia
Verbocracia
Verborragia

E se alguém discordar de mim
Quero saber
Mas por favor
Pelo amor
Me responda veementemente
Por escrito

Nenhum comentário:

Postar um comentário