Dissidência
Eu odeio o ícone!
Isso mesmo, o ícone
Esse avô lendo um jornal fedido ao som de Bach
Só pelo ato de se ler um jornal fedido ouvindo Bach
Que usa suspensórios, porque não há o 'não-usar-suspensórios'
Nem pode haver
Eu odeio o ícone!
Esse mesmo, que você odeia
Mas odeia porque lhe parece devido odiar
Olhe para trás, e me diga onde o ícone
Como medalha de soldado
Mais espetou do que honrou
Odeia porque odiar o ícone é confortável
Mas é confortável porque é ícone
Velho culto!
Você é ícone!
E eu te odeio
Porque você me machuca
E por nada mais
E te amo quando me afaga
Te odeio se me apedreja
Não te beijo se me escarra
Te machuco? Me despreza?
Mas me despreza porque te machuco?
Não passou a dor? O que ficou?
Só um velho lendo jornal de suspensórios
Não porque machuca, mas porque machucou
Não digo, me perdoasse
Não digo, me entendesse
Digo que fique com quem lhe faz bem
Porque fazer bem é bom
E se faz mal
Espera o mal passar
E volta com um escudo
Não com uma espada
Que o velho agora bate em seus netos
Porque está sozinho
E eu, como o ícone, no outro canto
Por inveja, só me deixou
Novamente com aquela saudade de saudade
Icônica, para dizer muito
A linha do ícone
Só não parece arbitrária
Porque é fixa
Mas é móvel, e arbitrária
É só viscosa, e mãe do sentido
Enquanto minhas pernas doem
E como explicar que não é o andar
São os suspensórios
Cheiro mal, não é o banho
É o jornal
Fico surdo, não é Beethoven
É Bach
Eu odeio o ícone!
Porque o ícone me machuca
E o ícone me odeia
Sem porque, porque porque o machuca
Odeia todos, porque, para ele, amar é uma conjectura
Mas se sentir confortável... Ah! O conforto!
Tão longe do irmão, o confronto!
Conforto é o nome pútrido da metaestabilidade
Um princípio cego de quietude
Usurpador da satisfação
Mãe de todos nós
O conforto é aquele menino ajustado a tapas
Brincando feliz com uma tábua quebrada no chão
E, mais do que o avô, odeia os porquês
Porquê o machucam
Sim, odeia verdadeiramente
Mas dentro do estigma da palmatória
E, tendo um porque
Se odeia, se sofre
E se esquece, brincando com sua tábua quebrada no chão
Porque? Ele cai de costas.
Não só não há
Não pode haver
Conforto, eu conheço outro
Sobrinho daquele, filho do Confronto
Esse é um infante sorridente
No colo da avó Satisfação
Com um chocalho, que todo dia quebra
Mas nunca está quebrado
Egressos do império do Ícone
Vivem de esmolas em minha casa
E eu hei de protegê-los
Pois são meus únicos amigos
Afastai-vos, filho do Ícone
Volta com perdão ou cura à minha insanidade fulminante
Desdém não quero
Essa argamassa dos prédios de arquitetura nefasta, que o ícone ergue quando um tomba
Igual ao antigo, e certo como o que não tem porquê