segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Uma epifania, um apelo.

Satyagraha

Eu acordo, tomo o ônibus
Entre o motorista e o passageiro de porta na cara, ódio
Aquele velho ódio que vemos. Não o ódio sensacional, o ódio de sempre
O ódio que somos
Abro um jornal e leio ódio
Abro o facebook e, para onde eu olho, é ódio
Bem vestido esse ódio que somos
Não me estranha quem o confunde com militância de um mundo melhor
Com preocupação, com amor até
Com amor até
No trabalho, o trabalho é ódio
Construído junto com o mundo por cada braçada de suor
Braçadas odiosas e pesadas
Na saída, eu vejo o ódio condensado
Disfarçado de um sorriso que se engana
No rush, a prova da inutilidade desse ódio
Com pressa de sentir-se para ter mais tempo para sentir-se
Ligo a televisão, e vejo as fazendas de ódio
E, ao deitar na cama, me vejo inimigo do ódio
E me vejo odiando o ódio
De modo que nem sendo inimigo do ódio
Eu deixo de ser o ódio

No dia seguinte, eu ando na rua
E uma jovem palhaça me entrega uma pequena flor branca
Enquanto outra segura um caderno escolar
Com linhas tortas dizendo "sorria!"
Me perdoem, as duas
É pouco amor
Mas é amor
Eu as amo
E bebo o ralo amor
Com a concha das duas duras mãos
Ponho a flor no asfalto, drummondianamente
E não choro
Porque o mundo não está ruim
O ódio não é ódio
E eu não odeio
Eu não quero que ele pare
Não ele
Ele não
Simplesmente,
Caeiramente
Paro eu
E cresço


Lento como uma flor no asfalto
Breve como o sorriso de quem gargalha
Eu olho para quem luta
Olho para quem descansa sempre
Olho para quem doa e para quem estupra
E não vejo mais nada
A não ser quem ama
E quem não ama
Quem ama é amor
E quem não ama é meu amado
E logo a última pedra de asfalto do jardim
Suspira profundissimamente e transmuta-se em Narciso
Estou cercado de espelhos
E eu sou o mundo
Sou o que vejo
E me amo
Me amo por quem sou e por quem não sou
Me observam duas palhaças, sorrindo como quem se vê viver
Me levanto e as abraço
Beijo seus lábios escuros, suavemente
E choro de amor sobre seus olhos coloridos
E cresço

Eu acordo, e tomo o ônibus
Sorrio para o colega do ponto, cumprimento o motorista
Aquele amor estúpido que não vemos. Não o amor justificado, o amor militante
O amor que sou
Abro um jornal, e aprendo sobre a aversão ao que sou
Abro o facebook e vejo boas intenções, potêncial
Nu, esse amor que sou
Por mais que estranhe, ninguém o confunde com o outro
Não é só roupa, não é ódio
Não é ódio
No trabalho, estou no auge
Construindo o mundo com a deliberação da flor que cresce
Deliberação crescente e consciente
Na saída, estou esgotado, e me vale descansar
Com o sorriso sincero de quem fez
No rush, eu ligo o rádio e dou passagem
Sempre sentindo-me para que todo momento seja igual
Ligo a televisão, e comento docemente
E, ao deitar na cama, me vejo confessor do ódio
E me vejo amando o ódio
De modo que, apenas sendo o melhor amigo do ódio
Eu deixo de ser o ódio

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Peço perdão ao pai de toda inspiração

Musagetes

Apolo flamejante, império do poeta
Relíquia áurea de luz que tanto reneguei
Embora a ingratidão não me nega tua seta
Embora Dioniso, o risivel amei

Se quero a embriaguez de uma poesia extática
Não sou capaz de não dar a ti tua vez
Se quero a sensatez sem a lírica errática
Dioniza-se você, qual gêmeo siamês

Mas quando a voz azul da Musa chega ao tal
Ponto de elogiar as raízes da arte
Só ao flóridoce mel do dendrítes carnal
Minha poesia traz sua glória e sua parte

Não posso agradecer, de tão humilde e fraco
E quão menos seria sem teu lustro farol
Acende em mim tua musa; ascende, mestre baco!
E luz-me a perfeição divina de teu sol