sábado, 7 de fevereiro de 2015

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Quando eu nasci, eu fui um objeto. Não que eu culpe alguém por isso...  O neonato só pode ser sujeito de uma coisa: seu sofrimento. E no inicio, eu sofri. Mas logo que parei de chorar, comecei a respirar, e a ouvir. O mundo era alto, vivo e ofuscante. E pela primeira vez na minha vida, eu pude respirar e ouvir sem me sentir obrigado a respirar ou ouvir isso ou aquilo. Mal sabia eu o quão livre era, e o quão raro é ser livre. Pensando bem, se eu soubesse o quão livre eu era, eu não o seria.

Aos quatro anos, eu era admirado por ter o que toda criança de quatro anos têm. A criança de quatro anos já pode ser sujeito de muita coisa, mas o que aprendi é que eu era objeto do Plano de Metas da criança. Não digo que foi difícil para mim ser essa criança. Eu era hipercinético, eufórico e inconsequente, como toda criança deve ser. Curiosamente, os valores que damos às crianças de quatro anos são os que reprimimos quando, aos vinte, ela bebe e usa cocaína. A primeira grande contradição da família. Eu era curioso, eu era pensativo, eu contestava e me divertia, ao estilo do rap das periferias. Mas eu não ouvi o rap das periferias. Eu gostava de padrões complexos e de ir aonde não dava pé, como no Romantismo de Brahms, Dvorák e Debussy. Mas eu não ouvi os românticos tampouco, e logo encontrei minha cocaína nas panelas e colheres de pau da cozinha. Minha sinfonia era, como nas dos românticos, uma tentativa desesperada de respirar. Ouvir e respirar. Como no rap das perifeiras, uma tentativa de rir e falar. Rir e falar, minhas novas habilidades. Aprendi que atender ao meu Plano de Metas era necessário para ganhar respeito. Aprendi a dissimular, e não gostei. Talvez meu sucesso mais tarde venha justamente de não ter gostado de dissimular. Mas eu ainda não precisava, então admito que fui eu mesmo, e me acostumei com isso. Me acostumei comigo mesmo. E para o resto da minha vida, esse costume seria a fonte de todo o bem e de todo o mal.

Aos oito anos, eu comecei a incomodar. Foi a primeira vez que percebi que incomodava. Na verdade, acho que comecei a entender que esses sacos de carne ao meu redor são como eu. Isso me confundiu, porque eu não me sentia como eles, e eles claramente não se sentiam como eu. Quando perdi meu primeiro amigo, não entendi o porquê. Na verdade eu não perguntei. A amizade para mim sempre fora uma exceção, que naquele momento voltava ao mundo das regras. E pela primeira vez, eu descobri a solidão, e isso foi mais confuso do que qualquer outra coisa. Além de confuso, insuportável. Eu não sabia, nem sei ainda, o que exatamente é a solidão, mas sabia que ela me incomodava. E de repente, amarrada à idéia de que todos somos iguais, solitários e acostumados com nós mesmos, a solidão fez sentido, e um mundo de pessoas infelizes abriu-se a mim. Sou uma dessas pessoas que foi criada para abusar do "a sociedade" em oposição a mim mesmo, mas naquele momento, o que eu mais queria era acreditar que eu era só uma parte. Me flagelar e caber naqueles falatórios nos quais eu me via tão vergonhosamente quieto. E essa seria a minha primeira ferida

Aos doze anos, eu era um cadáver ambulante. Todo romântico eventualmente encontra seu adagio quando a solidão vive mais do que a esperança. E maldito seja o vendedor de estrada que lhe deu aquela esperança sob o bordão de "a última que morre". Aos doze anos perdi a minha. Claro, eu ainda sabia dissimular, mas era ainda pior do que aos quatro anos, porque naturalmente já se esperava de mim muito mais do que hipercinética e inconsequência, e é aí que as expectativas humanas desfalecem. Depois que a opinião comum arranca de nós, aos berros, o título de crianças, como se houvesse (e há!) um racionamento de infância, nos sobram, no fundo, apenas nossos instintos, nossas experiências, e uns aos outros. E é aí que o bullying, que eu sofri e foi quase engraçado, além de fácil de contornar, dá lugar à rejeição, à vitrificação de pessoas em grupos nos quais possam encontrar um título que substitua o das crianças, um Plano de Metas alternativo. E normalmente os pré-adolescentes estão sozinhos nisso, porque é óbvio que as últimas pessoas às quais pedimos novos títulos são aquelas que nos tiraram os últimos. A segunda grande contradição da família. Eu não entendi que perdera o título de criança, justamente porque, como aos quatro anos, eu ainda estava acostumado comigo mesmo, e pouquíssimo acostumado com os outros, e a dissimulação que era em si conviver. Mal sabia eu o quanto eu já sabia, e o quanto as verdades infantis eram muito mais verdadeiras do que qualquer maturidade que eu viesse a ganhar. "Deixe-o na infância, o mar o tomará". Sim, a maturidade clara tinha segredos terríveis ainda para mim.

Aos dezesseis anos, eu terminei de descompensar. Depois de, dois anos antes, ter tentado suicídio, a idéia ficava mais e mais distante na medida em que eu reconhecia a inevitabilidade de subir as montanhas. "Não há povoados naquela direção". Tanto melhor, eu pensava. A solidão dos oito anos doía tão menos que a rejeição dos doze, que a escolha era óbvia, até irracional. Se eu encontrasse apenas mais sofrimento sozinho, pelo menos seria um sofrimento diferente. E foi ai que eu conheci a população ao pé da montanha. E eu descobri que haviam pessoas como eu, que eram acostumadas consigo mesmas e estavam, ainda, confusas depois de perderem o título de crianças e ainda não terem confiança em alguém que lhes dissesse o que fazer. Mas logo eu descobri que eu era diferente até mesmo dessas pessoas, porque eu queria escalar a montanha. Eu queria olhar para o mundo do alto, porque eu não enxergava, de lá de baixo, um lugar para mim. Eu não pararia de subir, de me afastar das pessoas, a despeito de tudo o que minha infância significara, e de ir a ambientes cada vez mais rarefeitos, sem ajuda, sem companhia e sem confiança, que pesavam demais para a minha jornada. Até que eu estivesse alto o suficiente para ver um lugar ao longe que fosse meu. Ninguém me viu subindo. Crianças, adolescentes e adultos evitam se aproximar da montanha, porque é cansativo e longe de casa. Mas ninguém falava do mal da montanha. Não era a cocaína dos povos, era apenas um lugar onde dava muito trabalho ir em grupo, e muito distante para se aventurar sozinho. A terceira grande contradição da família. Assim que eu atingi o cume da montanha, já sabia a verdade: eu não precisava olhar longe para ver a minha casa, ela estava lá. Me vesti em quatro camadas de pele de fera, mas a de fora era forrada de pelego de cordeiro, macio e divino ao toque. Esqueci do som de um verbo e da hipercinética de uma criança, inclusive a que, em face do imperativo, corre a obedecer ou a se rebelar, que não deixa de ser uma obediência do contrário. Hoje em dia eu rio, de remexer minhas peles, quando um de vocês do Vale fala em Beleza. Pouquíssimos de vocês viram a vista do cume da montanha, e não conheço ninguém que a tenha visto sozinho. Sozinho. A solidão tornou-se uma bênção, a rejeição, uma piada sobre o mundo inteiro, um Vale repleto de seres vazios, uma Caverna de Platão, mas sem sombras, apenas muito escura e vaga. A realidade estava ao meu redor, e ninguém havia me ensinado isso, a não ser meus olhos e minha pele. E lá eu encontrei mais do que a Verdade, que a Verdade, que eu tinha aprendido a buscar, era irrelevante perante a Beleza, o sublime abaixo de meus pés, como se eu pudesse destruí-lo com uma pisada.

Aos vinte anos terminei de descer. Por tanto tempo eu havia temido a montanha por ser tão longe de casa, e agora temia o Vale pelo mesmo motivo. Trazia comigo o mais longínquo habitante das montanhas, cujos doces amigos faziam uma longa viagem para confortar de sua solidão que, para ele, era muito menos do que suportável. Não conseguia ver o quão longínquo era o vale, e eu o trouxe comigo para ganhar coragem para a subida. Como o fujão da caverna de Platão, contei ao povo sobre a beleza sobre a montanha, mas descobri que enquanto eu estava na montanha havia acontecido uma enchente. "O mar o tomará", pensavam, oito anos antes, os Afogados. E agora meus amigos, minha família, não me reconheciam. Remover as peles só me machucou, porque debaixo delas, o que havia lhes era visto como um monstro. Reforcei a pele de cordeiro, e tentei de novo, mas todos estavam Afogados. O mar atingira até o povo ao pé da montanha, que tanto a amava, e mesmo assim preferiu ceder às águas a escalar. A consequência não foi doída, a consequência era a solidão, embora uma solidão desta vez acompanhada, declarada, reconhecida, mas nem por isso diferente da doce solidão dos picos. Eu estava longe de casa, mas havia um pouco de casa onde quer que eu fosse. E por anos eu desgastei minha pele de cordeiro tentando atender à visão turva dos Afogados. Por anos eu tentei levar uma só alma ao alto. E por anos eu me reacostumei à vida do Vale, embora com os benefícios da montanha, que não abandonam quem nela já repousou. Minha sinfonia tornara-se inaudível, como o famosíssimo silêncio de John Cage. Minha sinfonia era o silêncio, embora eu ouvisse muita música em nome de tentar entender como os Afogados ouviam. Finalmente eu entendi. Os afogados não tinham medo da montanha, eles tinham amor ao mar, e ódio à necessidade de respirar. Seu sonho era mergulhar apnéicos para sempre no azul infinito, todos juntos, e nunca mais voltar à superfície. Mas respirar é natural. De certo modo, a montanha também era um tanto apnéica, mas quem sabe acostumar seu corpo ao oxigênio das alturas nunca mais sente falta de ar. Eu não precisava de guelras para ir falar com os mais profundos afogados, o oxigênio dissolvido na água me bastava. Mas aos poucos eu percebia que era tarde demais. Ninguém sobrevive ao mar, senão eu, graças à montanha. E logo eu entendi que os afogados me odiavam, porquê eu fedia a superfície, e algo mais alto, mas distante de casa. Apesar disso, não me viam como um "habitante das montanhas". Essa expressão era para eles um contra-senso. Não, ninguém me vira subindo a montanha, justamente porque eu estivera lá sozinho, e ninguém acreditava que eu havia descido. Minhas bênçãos lhes cheiravam a cocaína, à podridão que com tanto esforço generalizavam a tudo que estivesse longe de casa, porque tinham amor ao mar. E eu aprendi a última lição: percebi que estava carregando meu amor esse tempo todo. O mais longínquo habitante das montanhas era minha última casa, uma alegoria daquele cume ao qual eu queria levar todos. Soltei meu amor. Não mais amei nada, nem ninguém. Rasguei a pele de cordeiro. E o amor se desfez como uma sombra sem o Sol que a projeta. Sobrou o oxigênio, minha audição e minha respiração. Sobrou meu nascimento, e minha morte, e entre eles, muita, muita coisa. E eu senti minha última pena dos afogados antes de atingir a Ataraxia, e reconhecer que tanto a montanha quanto o Vale eram apenas o que eram, e deixar de ter casa, para nunca mais sentir o peso que era ter de morar em algum lugar.

Em 15 dias eu faço 24 anos. O mais longínquo habitante das montanhas se afogou. Me senti culpado por tê-lo trazido ao Vale, mas ele teria voltado mesmo sem mim, e se afogado até antes. As vezes olho ainda para o cume da montanha. Não com saudade, que se perdeu na história agora que minha alma é uma alma de Andarilho, mas com uma genuína apreciação não da montanha, de sua solidão ou de sua vista, mas do que ela representou para mim: a casa em que precisei viver para aprender a não viver em nenhuma casa. Uma boa história, um bom andar. Andar, ouvir e respirar. Não quero, ainda, ensinar ninguém a não amar. Não é uma lição que eu saiba dar. Talvez um dia eu baixe o nível do mar, causando desconforto, mas depois um mundo que respira melhor. Talvez um dia eu consiga trazer os Afogados para fora, mostrar-lhes o Vale que quando crianças habitavam. Talvez um dia eu consiga levar alguém para a montanha, e nesse dia ouça alguém dizer as palavras que eu tanto amei dizer em face ao mundo nu. Talvez um dia, quem sabe, eu aprenda a ensinar alguém a soltar seu amor, largar não apenas sua casa, mas a casa que, através da saudade, pesa sobre todos nós como uma rocha levando um defunto às profundezas. Não tenho esperança, não tenho expectativa, não tenho sonho, não tenho realidade, não tenho amor, não tenho casa, não tenho mar. Tenho oxigênio, música e chão. E isso basta. Acredite, afogado amigo, basta.


Guilherme Antonini, fevereiro de 2015